sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Em respeito ao povo catarinense




Pense em tudo o que você possui. Pense no tempo que levou para adquirir sua casa ou apartamento. Pense em quanto você separou do seu salário, mês a mês, para conseguir pagar a cozinha sob medida dos seus sonhos. Pense no quanto você desejou o jogo de sofá no qual senta confortavelmente todas as noites. Pense no último eletrodoméstico que você comprou, aquele cheio de funções. Visualize seu guarda-roupa cheio de opções, mesmo que você já tenha cansado da maioria delas. Lembre daquela caixa com medicamentos, para o caso de ter dor de cabeça ou azia. Repasse em sua memória tudo o que tem na sua geladeira. Pense nas fotos que retratam toda a sua vida. Nos presentes que você ganhou no último aniversário. Nos livros e CDs que você coleciona. No cobertor aos pés da cama para as noites mais frias. No computador diante do qual você passa tanto tempo. Nos seus pares de sapato, seus perfumes, seus quadros. Pense em tudo que te cerca quando você está em casa. Pense...

E agora tente imaginar como seria perder tudo isso. Perder para a água, para a terra, para a natureza. Ver a lama invadindo sua casa, tomando conta de cada peça, levando embora tudo o que você construiu. Não há tempo para despedidas. Não há resgate. Apenas tudo sendo arrancado de você. Suas roupas e suas histórias lavadas em lama e tristeza. Não há como pensar em um futuro bom, apenas no que se foi e não mais voltará. São olhos afundados na água tanto quanto as pernas. Frio que gela o corpo e o coração. Não há compensação. Só desolamento. A falta de tudo o que é seu. A procura pela referência do que você foi, do que você era. O caminho por um chão seco, por proteção. A esperança de secar as ruas e as lágrimas. A expectativa de um sol que não se sabe mais que cor tem.

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Mania de explicação


Fico me perguntando por que as pessoas gostam tanto de saber os porquês. As crianças, se soubessem o mal que lhes faria entender os motivos das coisas ou do que elas são feitas, escolheriam não passar pela fase dos porquês. Mas a gente insiste em querer respostas. E depois de obtê-las, costumamos bolar mais e mais perguntas. Carência de entendimento. Carência incurável, aliás. Às vezes é melhor não entender. Entender significa perder a magia do efeito. O encantamento desaparece quando sabemos como são feitas as coisas. É como desvendar o segredo da mágica e abrir mão do brilho nos olhos cheios de novidades. Melhor mesmo é não entender. Melhor um ponto de interrogação que um ponto final. Não quero o encerramento do ponto final. Quero a espera do que pode vir depois das reticências...

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

As coisas quebram


A gente passa a vida toda juntando, adquirindo, querendo coisas. Coisas que facilitam a vida. Coisas das quais a gente precisa todos os dias. Coisas que a gente empacota cuidadosamente quando faz uma mudança. Coisas que a gente considera indispensáveis. Coisas que a gente passa meses desejando até conseguir comprar. Coisas que a gente ganha. Coisas que a gente nem sabe de onde surgiram, mas estão ali, entre as suas coisas. Apenas coisas.

A gente guarda porque acha que, uma hora ou outra, vai precisar. A gente chega até a sentir ciúmes das nossas coisas. Por vezes deixamos de usá-las para preservá-las, para que durem mais. A gente se ressente quando empresta uma dessas coisas e nunca mais a recebe de volta. São coisas que adquirem história. Coisas que podem já estar ultrapassadas, mas às quais a gente se apega. Ainda assim, são apenas coisas.

Eu sempre gostei muito de coisas para a casa. Para a cozinha, mais especificamente. Ganhei e comprei muita coisa para equipar esse ambiente tão acolhedor do lar. Pratos, copos, taças, xícaras, fôrmas, potes. Tudo o que se pode imaginar. Pratos de sopa de um lado, pratos rasos de outro. Canecas à frente, xícaras pequenas de cafezinho mais atrás. Travessas redondas à esquerda, travessas retangulares à direita. Maiores embaixo, menores em cima. Organização conforme o uso e o gosto.

Jogo de pratos dado por um grupo de amigas, xícaras que foram presente da tia, travessa de herança materna. Sopeira do chá de panela, jogo de taças pago em prestações, a caneca favorita do chá. Tudo em seu devido lugar, cumprindo sua função sempre que necessário. Coisas que participaram de jantares românticos, brindes de aniversário, canja no dia em que a saúde deixou a desejar. Apenas coisas.

Então, de repente, como se cansadas do uso, as coisas cederam. O armário aéreo em que elas estavam cuidadosamente armazenadas cansou de sustentá-las e colocou tudo ao chão. Ele não poupou nem uma única pequena xícara de café. Desistiu de tudo. Todas as coisas de que tanto gostava, agora, não passavam de cacos no chão da minha cozinha. Cacos de todas as cores e de todos os tamanhos. Cacos que me feriram. Pedaços de coisas que perderam o significado no momento em que se partiram.

Tudo no chão, espalhado por todos os cantos e sob todos os móveis. Não consegui recolher os cacos naquele dia. Evitei o retorno à cozinha. Não queria lembrar de tudo o que tinha guardado naquele armário que preferiu o chão à parede em que estava suspenso. Só no dia seguinte comecei a juntar os pedaços. Alças de xícaras que se libertaram. A flor desenhada no prato desprendia suas pétalas. O fundo do copo sedento da água que acolhera. A melhor porcelana na mesma situação do pirex. Nada restou. Apenas o passado das coisas tão despedaçado quanto elas. Apenas coisas.


Disseram-me para comprar coisas novas. Afinal, coisas são substituíveis. Depois de ver tudo transformado em lixo reciclável, percebi que eu não precisava tanto assim das coisas. Deparei-me com todas as outras coisas ao meu redor e entendi, com toda a clareza, que eram apenas coisas. E que, no final das contas, todas elas não passam de cacos que ainda não se partiram. Cacos dispensáveis. Tudo se quebra. O importante e o fútil. Apenas coisas. E as coisas quebram.

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

O amante latino


Era, definitivamente, um homem sedutor. Apaixonara-se algumas vezes, desiludira-se outras poucas. Preferia aproveitar os momentos ao lado das mulheres. De várias mulheres. Gostava de todas elas. Conversava e ouvia a todas. Não prometia nada a nenhuma. Elas selecionavam palavras perdidas de contexto e as uniam, de modo que coubessem exatamente em seus sonhos com ele.

Ele desenvolvera o dom de seduzir. Convivera muito tempo com mulheres e sabia o que elas precisavam ouvir. E ele dizia, com seu sotaque espanhol, com a voz de quem sabe o que quer e quando quer. Despia as mulheres com seus olhos verdes e famintos. Tocava no lugar certo: de leve na nuca, com gentileza nas mãos, com volúpia na cintura.

Era fácil de as mulheres se apaixonarem por ele. Depois de passarem um tempo juntos, muito juntos, ele prosseguia com suas conquistas e julgava ter ganhado mais uma amiga. Mas, para ela, não havia amizade, havia desejo. Desejo de mais. Desejo de ser ainda o foco do olhar dele. Só que isso não acontecia. Se ele permanecesse com uma mulher por um período mais longo, certamente mantinha outras novas conquistas paralelamente. Sua fidelidade durava apenas o tempo de sua presença.

Era incorrigível e gostava de sê-lo. Não tinha a mínima intenção de mudar. Algumas mulheres, antes de serem apresentadas a ele, eram avisadas: não se apaixone, ele nunca será seu. Ele admirava todas elas: loiras, ruivas, morenas, altas, crespas, baixas... Todas tinham algo que lhe agradava.

Da última vez que foi visto, estava com uma morena de longos cabelos crespos e sem curvas salientes. Sem muita graça, em um primeiro olhar. Contavam-se os dias até que ele fosse visto com outra. Ao ser alertada, a morena disse que sabia o que estava fazendo. Ela insistiu nele, e ele, sem entender direito, deixou a situação se estender. Quando a deixava em casa, seguia o rumo para mais festas e não poupava seu talento. Quando ele marcava com outras, alegava uma terrível enxaqueca para ela.

Sem que ele desse muita importância, se viu trocando presentes de Dia dos Namorados com ela. Conhecera sua família e ela, a dele. Começaram a passar mais tempo juntos. Ele alertava aos amigos: vou dar mais um tempo e terminar com essa história. Não terminava. Começou a gostar. E, de vez em quando, ainda criava uns casos paralelos para não perder o hábito.

Numa das tantas noites calientes de amor, ela vestiu-se e avisou que estava de partida. Sairia da vida dele. Concluíra que estava perdendo seu tempo ao lado dele. Ele sentiu um certo alívio. Mas o alívio veio seguido de susto, de insegurança, de medo. Viu sua menina saindo, virando as costas para ele. Percebeu que nunca havia feito nada para merecê-la. Lembrou de todos os casos, de todas as mentiras mal contadas, de todas as vezes que a deixou esperando.

Percebeu-se carente dela. De uma hora para a outra, se deu conta de que não era mais um garoto e que acabara de perder a única mulher que o fazia sentir-se homem. Foi até ela. Contou-lhe tudo o que ela já sabia e mais. Explicou que nunca vira as coisas de forma tão clara: era ela. Mais ninguém. Nunca mais. Desculpou-se. Implorou. Ela cedeu. Estão completando 10 anos de vida em comum e ela está esperando o segundo filho. “Não se pode perder a fé nos homens”. É o que ela costuma dizer.

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Quando os olhos se entendem


Jantaram entre silêncios e olhares que não conheciam. Palavras de gente grande que escondem as crianças carentes de afago. Um toque tímido de mãos que alcança o coração. Frases ensaiadas que perderam o sentido na hora de serem ditas. O convencional em que se acreditava perdido no que a emoção designa.

É fácil punir de longe. Por telefone, as palavras cruéis fluem como se o alvo delas fosse realmente o aparelho. No espaço da ligação não cabem desculpas, apenas mágoas. O sofrimento é solitário, não tem cúmplices. Muito do que se quer dizer fica calado no peito. As lágrimas são sentidas apenas pelo travesseiro, que não consola. Perdem-se as forças e os sonhos. Perde-se o contato.

Mas agora estavam ali, frente a frente novamente. Tentavam lembrar o que os havia afastado, já que o último encontro terminara em um beijo. A palpitação e a lembrança do dia em que se conheceram. Mexem no suco, no guardanapo ou no enfeite da mesa para disfarçar a ansiedade. Mastigam e não sentem o gosto. A vontade de comer se encerrara no telefonema. Ela esconde o olhar em todas as outras cores do ambiente enquanto ele beija o perfil dela com os olhos. Ele levanta e o olhar dela o abraça silencioso. Ele repara no novo corte de cabelo dela. Ela cortou o cabelo para ele... “Será que ele notou?”

Demoram. Não conseguem falar tudo o que precisavam. Esquecem o que foi dito. Saem lado a lado e voltam para o caos imperceptível da rua. Ela não vê as pessoas correndo apressadas porque sentiu a mão dele em seu ombro. Ele esquece de seus horários porque finalmente a alcançou. Olham-se sem entender o que passara. Olham-se sem nada dizer. Quem se ama se entende pelo olhar. Ele beija os olhos dela. Agradece por eles lhe comunicarem que ela o ama. Seguem de mãos dadas para o resto de suas vidas. E sabem que lá não há lugar para telefones.

sábado, 8 de novembro de 2008

Os primeiros raios de sol...


Sempre sofri com um grave problema. É de nascença, eu sei. Para alguns, nem é problema. Por mais que eu tente, não será diferente. Sofro de uma brancura que me cobre, de ter quase a cor do leite, uma palidez lunar, como já me disseram. Não sou a única e sei que há casos piores que o meu. Mas é isso, uma herança genética da qual nunca conseguirei fugir.

É o tipo de brancura que se torna ainda mais branca quando resolve pegar os primeiros raios solares do verão. E quando isso acontece em uma cidade como Salvador, na Bahia, a minha palidez quase chega a cegar, perto de todas aquelas pessoas uniformemente bronzeadas, douradas, com cor de verão o ano todo.

E eu sempre me iludo achando que poderei ficar tão bronzeada quanto elas. Escolho uma cor na praia e a meta está traçada: quero ficar assim até o final do verão. Como é de se imaginar, isso nunca acontece. O que acontece são desastres típicos da estação para alguém tão clarinha quanto eu.

Preparo o kit-praia: protetor de todos os fatores, partindo do 15 (que minha dermatologista não leia isso!!), óculos, protetor labial, boné, canga, saída de banho, chinelo, biquíni e mais várias outras coisas que acabo não usando. Resolvo seguir o exemplo daquelas mulheres douradas estendidas ao sol e faço exatamente a mesma coisa: horas e horas em parceria com o astro dourado, num pacto secreto em que ele só me queimará sem machucar, devagar, mas com efeito; que, pelo menos em uma estação do ano, terei o privilégio de usar uma roupa branca sem parecer um fantasma.

Só que parece que o sol não concordou com as regras do pacto e resolveu ser cruel. Na hora, tudo parece estar sob controle. É a maior alegria afastar a alça do biquíni e ver que há uma discreta diferença entre a parte coberta e a exposta. Começo a me sentir íntima do sol e de suas manhas e deixo o resto das horas do dia surtir efeito.

Até chegar em casa e encontrar a primeira pessoa que não esteve na praia comigo: a cara de espanto, a exclamação “Meu Deus...” em tom de lamentação. Todo o orgulho adquirido por ter começado a mudar de tom começa a virar desconfiança de que algo saiu errado. E, como se fosse novidade, deparo-me diante do espelho. O estrago está feito. O que era para ser dourado virou a pior tonalidade de vermelho. Aquele vermelho que dói, que arde.

Banho frio e muito hidratante... Em que momento o sol me pegou desprevenida e fez isso comigo? “Deve ter sido durante as 5 horas que você ficou esparramada no sol”, alerta a sincera e irônica companhia de praia. Eu me boicotei. Fingi passar protetor, o que significa passar em algumas partes do corpo e deixar as outras a Deus dará... O resultado fica infinitamente pior. É um mapa-múndi mal desenhado em meu corpo como se o sol tivesse usado lápis-de-cor vermelho.

Mas não é apenas essas manchas amorfas espalhadas pelo corpo. É a dor que elas trazem. É tomar banho com medo de onde a água vai bater. É ter que escolher as roupas mais leves, quando a vontade é que a pele fique nua, sem contato com nada. É achar a posição para dormir sobre as escassas áreas do corpo que conseguiram a proteção do protetor solar. É limitar o abraço porque a ardência não diferencia o que é carinho. E o pior: é abdicar dos dias seguintes de praia e de sol por ter tentado desafiar a natureza logo no primeiro dia. E ficar com a voz do Pedro Bial repetindo a frase final de sua famosa mensagem: “Mas no protetor solar acredite”...

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Com o coração na mão


Você se recupera. Se você se queima, se você se corta, se você se machuca... você se recupera. O corpo está preparado para tapar feridas, para curá-las. Na maior parte das vezes, não fica nem cicatriz. Você logo se recupera de acidentes, queimaduras, quedas.


Você só não tem como prever quanto tempo levará para se recompor quando o corte é mais fundo. Quando é feito diretamente no seu coração. Você não sangra, não aparecem hematomas, não há marcas. Mas todo o sangue que circula em suas veias é o seu coração sangrando, chorando em vermelho.


Primeiro ele acelera. Recebe o golpe e quase não acredita que o acertaram. Acelera, ruboriza, treme. Só então você percebe que ele foi atingido. Depois vem a dor, a dor que é física, a falta de ar, o enjôo no estômago. Não há anticorpos para isso e nada mais funciona direito quando o coração é ferido. E aquela dor vai tomando conta... enche seus olhos, esvazia o olhar, emudece a boca, paralisa os gestos.


Não tem remédio. Não passa. Fica alojada e se faz lembrar a cada batida do triste coração. E tudo falta. Falta a fome, o sono, o sorriso. Falta o ar, o ânimo, a paz. Sem previsões. Sem lampejos de esperança. Talvez algumas promessas em que seu coração já não consegue acreditar.


Apenas a dor, o vazio e o tempo.


Não há medicina que cure.


A única chance de melhorar está naquilo pelo qual o seu coração ainda bate.