sexta-feira, 26 de junho de 2009

A bíblia de cada um

Ela chegou envolta por seu longo vestido azul-marinho, a pesada pasta de um lado e uma pequena bolsa de pano do outro. Caminhou lentamente entre os que ali estavam e dirigiu-se ao seu lugar, perto da janela, perto da luz, onde seus olhos conseguiriam alcançar a todos. Retirou os óculos da caixinha como quem não depende deles. Vestiu-os elegantemente dispensando-os, olhando por cima das lentes. Os óculos em seu rosto são adereços, não são necessidade. São o recorte que ela escolheu dar a suas leituras.

A bolsinha de pano ficou em cima da mesa e logo foi aberta, provando não ser o comum objeto feminino que guarda, além da carteira e do batom, tantos outros segredos. Aquela bolsinha de pano era a proteção de um grosso livro de finas folhas. Uma bíblia, a quem olhava distraidamente. Cheia de marcações, clipes, marcadores de página improvisados, observações escritas a lápis nas bordas. Até ela começar a ler alguns trechos e seus ouvintes entenderem que o livro tão bem protegido e tão amplamente lido não se tratava da bíblia, mas de Obras Completas de Carlos Drummond de Andrade.



Mas como se fora uma religiosa, ela sabia vários trechos de cor, by heart. E os dizia como quem lê profecias, a ensinar por metáforas. Sabia exatamente onde encontrar os versos que lhe traduziam. Sua doutrina é drummondiana. As fases do poeta são as divisões de um suposto velho e novo testamento. Farewell é seu apocalipse. Sua fé é toda naquela poesia.

Gauche, José, Carlos, e não Davi, Pedro, Judas. “As sem-razões do amor”, e não “Cântico dos Cânticos”. “Alguma poesia”, e não “Gênesis”. Ela não duvida de Deus, não desmente a bíblia. Mas, para ela, é em Drummond que ‘a poesia (inexplicável) da vida’ se revela.

terça-feira, 16 de junho de 2009

Aquecimento global, Obama, voo 447, eleições no Irã, greve da USP, Fidel e Raúl, FMI, enchentes, Coreia do Norte, toque de recolher, Susan Boyle, CPI, crise mundial, Amazônia, Berlusconi, Olimpíadas 2014, José Dirceu, Osama, ENEM, Copa das Confederações, São João, Kaká e Real Madrid, Influenza A (H1N1), novas regras ortográficas, crise imobiliária nos EUA, venda da Chrysler, dengue, TV digital, Dilma Rousseff, reality shows, células tronco, parada gay, Sadia e Perdigão, Bovespa, Sarney, trânsito...
Fica tudo oco
quando tua boca preenche a minha.


sexta-feira, 12 de junho de 2009

Presente de Dia dos Namorados


Hoje, Dia dos Namorados, minha mãe ganhará um belíssimo presente. Ela ainda não sabe o que será, mas tenho certeza de que a deixará muito satisfeita. É assim que tem acontecido nas últimas datas comemorativas do calendário. Natal, Páscoa, Dia das Mães, Aniversário... Todos esses dias são motivos para um novo presente. Às vezes ela é presenteada sem que seja nenhuma data especial, apenas pelo prazer de presentear.

E isso tem lhe acontecido especialmente de poucos anos para cá, depois que ela se separou. Após esse evento, todos os presentes lindamente embalados foram sempre acertados. Nunca ela precisou trocar, nunca abriu o pacote e deparou-se com algo que não gostava. Têm sido os melhores presentes. Trazem os mais abertos sorrisos para sua face. Roupas, sapatos, bolsas, livros, viagens. Uma ida ao cinema, um jantar especial, um café da manhã caprichado.

Minha mãe, depois que se separou, decidiu dar presentes a si mesma em todas as datas. Percebeu o quanto ela é merecedora dos melhores presentes, de mimos, de carinho. Ela não deixa passar nenhuma data em branco. E a impressão que eu tenho é que ela nunca fora presenteada com tanto amor como agora.

(A ela e a todos, um Dia dos Namorados em que saibamos presentear a nós mesmos...)

segunda-feira, 8 de junho de 2009

P&B

Como é bom ter o recurso de poder bater uma fotografia em preto&branco!

O preto&branco disfarça aquilo a que não queremos dar destaque. Em dia de olheiras, de espinhas indesejadas, de marcas na pele, de cabelo oleoso... O preto&branco é a solução!

Com o preto&branco, os defeitos se tornam imperceptíveis. Ninguém vai reparar no que não está bem e tudo vai parecer ainda melhor do que realmente é.

Se a imagem colorida não está muito boa, muda-se para o preto&branco e tem-se um efeito clássico, sem falhas, com um toque de nostalgia de um momento tão único e tão aprazível aos olhos.

A minha lástima é de ter o efeito preto&branco apenas na máquina fotográfica. Às vezes a vontade é de olhar a vida com lentes de preto&branco, deixando os defeitos – próprios, alheios e do mundo – meio escondidos, e admirar o belo que se apresenta.

Há defeitos em tudo. E quando a nossa lente está muito fixada nos erros, pode ser melhor fechar os olhos e reabri-los numa perspectiva oportunamente preto&branco.

sexta-feira, 5 de junho de 2009

Diálogos III

(Amiga 1) – Mas tem tanta opção por aí... Se não dá certo com um, tenta-se com outro!
(Amiga 2) – É... Tem opção, sim. Nem tudo está perdido.
(Amiga 3) – Mas olha, eu cheguei a uma conclusão: Todos os homens, mais cedo ou mais tarde, vão pisar na bola mesmo e vão nos fazer sofrer. Inevitavelmente.
(Amiga 2) – Mas e aí? Não tem solução?
(Amiga 3) – Solução, não. É apenas uma questão de escolher com quem você vai se f...

quinta-feira, 4 de junho de 2009

Noite de balada


Estava doida para curtir uma festa. Caprichou na maquiagem, no vestidinho que recém comprara, no sapato alto (nada como um salto para elevar a auto-estima feminina). Iria com as melhores companhias, as amigas sempre bem-humoradas e alto astral. Sair naquela noite significava provar para si mesma que ainda sabia se divertir, que não estava tão velha assim e – quem sabe? – que ainda poderia ser desejada.

O lugar mais badalado da cidade. As pessoas mais lindas. As melhores músicas. Os melhores drinks. Divertia-se, mas entendeu que aquela história de ser arduamente desejada não seria tão fácil diante de todas aquelas outras mulheres bem mais jovens, bem mais magras, bem mais produzidas que ela.

“Dance like no one’s watching” foi do que ela lembrou. Diversão garantida no embalo desordenado do seu corpo. Entregou-se à cadência, esqueceu todo o resto do mundo, fechou os olhos e dançou. Apenas dançou. Perdida na música, sentiu as mãos dele entrelaçando sua cintura, entrando no ritmo dela, admirando-a como se fosse a mais encantadora de toda a festa. Ele não desviou os olhos. Apenas dançou. Junto com ela.

Com uma rapidez inesperada, ela virou as costas e correu. Ele tentou acompanhar. Ficou o tempo de muitas músicas diante do banheiro esperando que ela retornasse de lá. Ela tinha certeza de que ele já estaria dançando com outra. Lastimou-se e saiu, já com a chave do carro em uma mão e a outra segurando a alça do vestido arrebentada. A festa terminara assim.

À porta do banheiro, lá estava ele. Ela queria morrer de vergonha. Como é que se explica isso? Mostrando a ponta da alça, disse com ar de derrota:

– Desculpa, tenho que ir. Meu vestido arrebentou.

– Espera! – foi o que ele respondeu, tomando posse da alça.

Ela tremeu. Visualizou a cena patética de seu seio à mostra no meio da maior balada da cidade. Paralisou. Só depois do choque imaginário conseguiu entender o que estava havendo. Nada escandaloso. Ninguém mais prestava atenção nela. Apenas ele, que estava amarrando a alça ao bojo do vestido. Acabou com a estética. Fez um nó ridículo. O coerente ainda era ir embora.

Ela, sentindo-se incomparavelmente linda naquela roupa improvisada, deu a mão a ele e decidiu que ainda não era hora de parar de dançar.