terça-feira, 14 de maio de 2019

Parabéns, pai, pelo dia das mães!



No último final de semana comemorou-se o Dia das Mães, uma das datas que mais se vende no ano e que mais enche os restaurantes. Reverencio a minha mãe nesse dia e em muitos outros. Reverencio a maternidade, com suas dores e alegrias.

Mas, nesse dia, minha família também parabenizou meu irmão, pai de dois filhos. A justificativa para essa homenagem estendida a ele é o fato de que inúmeras vezes ele cumpre também o papel de mãe.
Pensando nisso e especialmente porque agora sei o que significa ter filhos e porque minhas filhas têm um pai presente, resolvi me abster da parabenização. Expliquei a ele, por telefone, minhas razões para não ter me incluído na lista de pessoas que o parabenizou... e decidi compartilhar aqui essas razões.

Primeiramente, há de se questionar o que as pessoas querem dizer quando afirmam "esse pai cumpre o papel de mãe também". Afinal, o que vem a ser o papel do pai e o papel da mãe?

Meu irmão perdeu noites de sono na infância de seus filhos, assim como sua então esposa, na época, o fez. Ele continuou perdendo noites ao levar e buscar os meninos em festas na adolescência. Era o fão número um nos shows das bandas em que meu sobrinho tocou, insistiu nas boas companhias e nos conselhos de como se comportar nas baladas e na vida.

Meu irmão bancou financeiramente os filhos, escola, lazer, faculdade, presentes de namoradas, passagens para viagens de férias, roupas, instrumentos musicais, inscrições para concursos, comida e crédito para o celular.

Meu irmão conversou e ainda conversa sobre sexo, sobre preservativos, sobre gravidez indesejada, sobre relacionamentos e responsabilidades.

Meu irmão fez questão de obter a guarda legal do filho menor de 18 anos na época, e assim o fez, assumindo todas as responsabilidades de uma guarda unilateral. Preparar as refeições, lavar e passar roupas, acordar o menino para ir à escola, cobrar boas notas, pensar na programação do final de semana, delegar responsabilidades ao filho, contar com a ajuda da avó para quando ele próprio precisasse sair à noite e, logicamente, nunca deixou de trabalhar fora para poder arcar com os custos disso tudo.

Diante desse cenário, que talvez ainda seja incomum de ser assumido por muitos homens de nossa sociedade, eu volto a perguntar: onde está, em toda essa descrição, o "papel da mãe"? A meu ver, tudo o que meu irmão fez (e continua fazendo), toda sua dedicação às suas crias, são a pura representação do que significa ser PAI. Ou seja, ele cumpre o papel que lhe coube desde que completou 19 anos e ouviu o choro de seu primeiro filho chegando ao mundo, quando mal sabia o que ele próprio queria fazer pelo resto de sua vida. Mas desde lá, havia a certeza dentro dele: ele seria pai. Todos os dias e para sempre. E é isso que ele tem sido todos os dias, há quase 30 anos. Ele não tem sido mãe. Os agora homens que ele gerou têm mãe.

Meu irmão não precisa do título de mãe para ser reconhecido por toda a responsabilidade parental que sempre assumiu. Talvez essa seja uma maneira de diminuir o papel da mãe, mas isso não nos cabe fazer. O que me cabe, como irmã, como tia, é engrandecer a figura desse homem como um exemplo a ser seguido de PAI.
O homem que fica com a guarda do filho não está assumindo função de mãe, ele simplesmente tem total clareza de seu papel de pai.
O homem que cozinha, que dá banho, que vai às reuniões de escola não está na função de mãe, ele está na sua própria função de pai MESMO, interessado e presente.

Por isso, para mim, elogiar um homem dizendo que ele é também "mãe" de seus filhos é apenas uma fala machista que ainda acredita que tudo o que meu irmão e tantos outros pais fazem não lhes cabe como dever e que, quando o fazem, é por opção, não por obrigação. Está mais do que na hora de percebermos, com exemplos como esse de meu irmão, o que ser pai realmente significa, que ser pai tem as mesmas responsabilidades e possibilidades de cumprir com as demandas de uma criança que a mãe tem.

Quando chegarmos nesse ponto de entendimento, talvez o segundo domingo de agosto também se torne uma data tão celebrada quanto essa de maio. E lá, como sempre, direi ao meu irmão, com o coração cheio de orgulho: "Feliz dia dos pais, mano!"

Flores, de Afonso Cruz



"Uma coisa são lágrimas de cebola e outra são lágrimas do coração."

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"Cada homem é um universo, se não fosse não caberia tanto sofrimento dentro da cabeça de cada um."

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"Creio que, numa relação, o beijo terá sempre de manter a densidade do primeiro, a história de uma vida, todos os pores-do-sol, todas as palavras murmuradas no escuro, toda a certeza do amor. Mas já não é assim. Agora sabem às vacinas que tínhamos de dar à cadela (já morreu), às conversas com o diretor da escola, à loiça por lavar, à lâmpada que falta mudar, às infiltrações no teto, às reuniões de condóminos. Toco levemente os lábios dela e sabe-me à rotina, às finanças, ao barulho da máquina de lavar roupa. Beijamo-nos como quem faz a cama."

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"Nunca é fácil ser criança e esse tempo só é bom para os psicólogos ganharem dinheiro."

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"Gostava que a vida fosse assim e nos presenteasse com vários ângulos ao mesmo tempo. Poderíamos ser crianças e adultos na mesma frase. Poderíamos ser viciosos e virtuosos no mesmo gesto de pousar a chávena do pequeno-almoço. Mas se calhar já é assim, e as pessoas treinadas conseguem ver a vida como se olha para um carrinho de lata vermelho, vêem o condutor de frente e de lado, tal como sabem que uma pessoa pode ser viciosa e virtuosa no mesmo gesto de pousar."

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"Se um dia vier a acreditar em Deus, não quero relâmpagos e trovões, quero um sorriso delicado como aquele que aparecia no teu rosto. O mundo, quer-me parecer, é muito mais um sorriso ou uma flor a abanar ao vento do que um terramoto, um monumento de pedra ou um grand canyon."

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"Tenho a certeza de que a vida morre com a rotina e não com a morte, e que o hábito nos petrifica, um dia olhamo-nos ao espelho e estamos transformados em estátuas. [...] a rotina embacia-nos, torna-nos indefinidos, desfocados, fantasmas, máquinas, ao mesmo tempo que nos solidifica em estátuas de sal. A consciência da morte é o que nos desperta dessa morte em que vivemos, que nos diz o que deveríamos ter feito, o que deixámos de fazer, a morte é um despertador, um despertador que nos acorda para a inevitabilidade dos nossos erros."

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"Vivemos numa tapeçaria e que, por mais longe que estejamos uns dos outros, somos a mesma história, fazemos parte do mesmo tapete, a morte de uns é o nascimento de outros, a face da nossa vitória é a derrocada de alguém."

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"As mães são as fiéis depositárias da nossa infância, dos primeiros anos. As tuas memórias mais importantes, mais formadoras, não são tuas, são dela. E quando a tua mãe morrer, levará consigo a tua infância, perderás os primeiros anos da tua vida. Por isso, trata-a bem."

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"Houve um tempo em que cosi as minhas artérias ao teu corpo e todo o sangue que bombeava era na tua direção."

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"Era a vida a provar-me que não tinha acabado tudo, que a vida é um constante recomeço, que nos pisa e nos massacra apenas para ter adubo para se recriar, num círculo nietzschiano, exibindo uma falta de consideração, tato e educação, como se não tivesse sentimentos. A vida dá cabo de nós para logo de seguida ir ao café beber uma milnovivinte e brindar ao início de uma nova tragédia, que acabou de nascer."

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"Em certa medida, somos todos homens artificiais, de barro ou pedra ou madeira, uns pinóquios que precisam de despertar para uma vida de carne e osso. O somatório dos horrores deveria ser capaz de provocar esse despertar."

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"A solidão deve ser a única emoção que não conseguimos partilhar, se o fizermos ela desaparece."

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"Olho para as formigas e são tão pequenas debaixo dos meus pés descalços na relva, e sinto este poder imenso de as esmagar, e imagino Deus, com os mesmos pés, a olhar para nós como seres insignificantes. E Ele, com os seus pés de unhas endurecidas a pisá-las, sem se aperceber da riqueza que cada formiga tem dentro dela. E tenho vontade de gritar quem sou, fazer ver que não mereço ser pisada por um pé incauto, mas é a vida, ser formiga de Deus, ser pisada, ser uma pessoa que passeia os seus cães nos jardins com um saco de plástico para recolher a merda."

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"Não há tradutores de arte. O que faria um tradutor de arte? É muito simples, traduziria a arte para outras linguagens: olhava para os girassóis do Van Gogh e traduzia-os para as leis da Física, e assim ficava explicado o Universo. Mas esse é um trabalho que ninguém faz, todos têm medo de o fazer, somos uns cobardes a olhar para a arte, Kevin, temos medo de que aquilo nos dê uma resposta cabal e deixe de haver motivo para viver porque passámos a saber tudo. Somos uns poltrões que andam pelos museus a olhar para obras-primas para depois dizer: Maravilhoso. Maravilhoso, o caralho, aquilo é muito mais do que isso. Que digam que o Grand Canyon é maravilhoso, que as cataratas de Iguaçu são maravilhosas, está bem, mas de um quadro do Van Gogh? É só isso que têm a dizer? Maravilhoso? São uns cobardes. UNS COBARDES!"

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"Um rio, Kevin, está ao mesmo tempo na nascente e na foz. A vida também é assim, mas nós imaginamos que é um barco a descer o rio, um humilde pescador que por vezes tenta remar contra a corrente, mas é impossível vencê-la. Porém, nós somos o rio, que imagem tão gasta, Kevin, mas deve ser isso que somos. Ao mesmo tempo na nascente e na foz, moribundos e nascituros ao mesmo tempo, no útero e enterrados ao mesmo tempo, e no entanto sempre diferentes de nós mesmos, porque a água é sempre outra, a nascente está sempre a mudar, a foz está sempre a mudar, o nosso passado também, o nosso destino também, somos esta imagem tão gasta pelos poetas, pelos cantores, é isso mesmo, Kevin, uma alegoria velha, somos o tal rio, o tal lugar-comum."

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"“Creio que o guarda-chuva é uma excelente invenção. Repare: não é um objeto que acabe com a chuva, é sim algo que evita a chuva individualmente. Não gosto dela, mas não acabo com ela, não a destruo. O guarda-chuva é uma filosofia que usamos no quotidiano. A água continua a cair nos campos, apenas evito que me estrague o penteado. É um objeto bondoso, que não magoa ninguém.” Não há muita coisa assim."

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"Os pobres, como sabe, não são ricos. São as solas dos sapatos. Estão lá em baixo a proteger a envergadura toda, constantemente a serem pisados, pois a condição da sola do sapato é essa, ao mesmo tempo que serve de base, de raiz."

domingo, 12 de maio de 2019

A filha perdida, de Elena Ferrante



"Sempre chega o momento em que os filhos dizem com raiva e tristeza: por que você me deu a vida?"

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"As coisas mais difíceis de falar são as que nós mesmos não conseguimos entender."

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"O não dito fala mais do que o dito."

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"Um filho é, de fato, um turbilhão de aflições."

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"Queria que minhas filhas fossem amadas, não suportava que não fossem, a possível infelicidade delas me aterrorizava."

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"Desancorar-se, sentir-se leve não é algo positivo, é uma crueldade consigo mesmo e com os outros."

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"Sempre existe um fino galho da própria vida ao qual se agarrar e, ali suspenso, se acostumar à necessidade de cair."

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"Uma mãe não é nada além de uma filha que brinca."

sábado, 11 de maio de 2019

Becos da Memória, de Conceição Evaristo



"Entre o acontecimento e a narração do fato, há um espaço em profundidade, é ali que explode a invenção."

"Ele envelhecia porque estava perdendo as esperanças. Envelhecia porque nem vontade de recomeçar de novo tinha. Envelhecia ao fazer um balanço de toda a sua vida e só ver a morte como única saída."

"Sonho que é uma vontade grande de o melhor acontecer. Sonho que é a gente não acreditar no que vê e inventar para os olhos o que a gente não vê. Eu já tive sonho que podia e não podia ter. Eu tive sonho que dava para minha vida inteira, para todo o meu viver.
[...] Sonho só alimenta até à hora do almoço, na janta, a gente precisa de ver o sonho acontecer. Tive tanto sonho no almoço de minha vida, na manhã de minha lida, e hoje, no jantar, eu só tenho a fome, a desesperança..."

"Todos aqueles que morreram sem se realizar, todos os negros escravizados de ontem, os supostamente livres de hoje, se libertam na vida de cada um de nós, que consegue viver, que consegue se realizar. A sua vida, menina, não pode ser só sua. Muitos vão se libertar, vão se realizar por meio de você."

" E quem mudaria? Quem mudaria seria quem estivesse no sofrimento. Quem arreda a pedra não é aquele que sufoca o outro, mas justo aquele que sufocado está."

"Quando um sujeito sabia ler o que estava escrito e o que não estava, dava um passo muito importante para sua libertação."

sexta-feira, 10 de maio de 2019

Frascos vazios


Uma das minhas mais secretas satisfações, dentre as inúmeras pequenas alegrias que criamos para nós mesmos, é esvaziar frascos, especialmente aqueles que mantemos no banheiro. Frascos de shampoo, de pasta de dentes, de cremes hidratantes, de perfumes. Digo especialmente esses,  pois são os que, normalmente, demoram muito para serem esvaziados - pelo menos, os meus.

Os frascos de perfume, por exemplo, ficam meses e meses ao seu dispor. Oferecem seu líquido magicamente perfumado para diversas ocasiões de sua vida, seja para o dia a dia do trabalho, para o momento refrescante após o banho ou aquele evento tão ansiosamente esperado. Você o usa com parcimônia. O perfume que se usa para trabalhar não é o mesmo que se usa para ir a uma festa. Ao chegar ao final, é importante poupar cada gota, borrifar de leve no seu pescoço para aproveitar o restinho do aroma que lhe fará falta. E quando finalmente acaba, por vezes você até pode guardar o vidro de perfume, por ser bonito e lhe trazer boas lembranças, mas acabou - deixe-o de lado e comece um novo.

Frascos de hidratante são igualmente interessantes, dos menores aos maiores. Também custam a terminar e o bom é raspar até o final, nas últimas sessões de hidratação de pele com ele. Quando realmente não há mais nada a lhe oferecer ali, então é hora de jogar fora. Abrir espaço no balcão da pia, colocar um novo em seu lugar.

O bacana desses frascos esvaziados é a sensação de conclusão, de finitude. Eles já lhe deram tudo que poderiam, foi uma curtição mútua e é hora de desapegar, mudar, começar de novo. Penso que essa é a razão pela qual eu goste tanto de chegar ao ponto de um frasco vazio. Desfazer-se dele pelo meio é desperdiçar metade do potencial oferecido, é desistir no meio do caminho, é inconclusivo. Bom mesmo é acabar com seu shampoo e ainda adicionar água no final para aproveitar um pouquinho mais do aroma, da sensação, do conteúdo.

É preciso chegar até o fim das coisas. É preciso esgotar as possibilidades. É preciso ficar com vontade de mais, ao invés de arrependimento por não ter aproveitado tudo o que podia. É preciso esvaziar. Esvaziar-se. Criar espaço. E começar tudo de novo.