quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Já dizia Machado


Para algumas pessoas, não basta amar. Algumas pessoas precisam de garantias, precisam da posse. Precisam de promessas de amor impossíveis de serem cumpridas. Para consegui-las, também prometem sabendo que não conseguirão realizar. Precisam de um atestado de pertencimento que deve ser constantemente renovado.

Foi mais ou menos assim que surgiu essa história de casamento, que, em sua origem, não tinha nada de romântica. Foi uma maneira encontrada pelos homens de garantir que suas propriedades permaneceriam com herdeiros legítimos. Com o papel assinado, sentiam-se no total direito de cobrar fidelidade extrema da mulher, sem correr o risco de ver suas terras em mãos do filho de outro homem. Enquanto isso, eles não se privavam do prazer de estar com outras mulheres... Assim a gente entende melhor por que a traição feminina ainda é tão condenada. Mas aí já entramos em outro assunto...

Enfim... Essa necessidade de sentir-se dono de algo/alguém é muito antiga. Tanto quanto a probabilidade de falha dessa atitude. A pessoa pensa que tem domínio sobre a outra. Vigia. Espiona. Monitora. Quanto mais aguçadas suas técnicas de controle sobre o outro, melhor esse outro saberá livrar-se delas.

Isso remete a Dom Casmurro, do Machado, e uma de suas célebres frases no final da narrativa, referindo-se a sua total insegurança com relação à Capitu: “Não tenha ciúmes de tua mulher para que ela não se meta a enganar-te com a malícia que aprendeu de ti”. É isso: ciúme está diretamente relacionado à insegurança, que leva à necessidade de confirmação de posse, que é totalmente infundada.

Algumas pessoas são sentimentalmente maduras o suficiente para estarem imunes a essa necessidade primitiva e distorcida. Outras não. São viciadas nos pronomes possessivos. Esquecem-se de que pronomes também podem ser indefinidos. Ou relativos. E pior... que um pronome fora de contexto perde completamente o significado.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

Você tem medo de quê?


Admita.
Você tem medo.
Medo de dar a cara à tapa.
Medo do próximo passo.
Medo do que os outros vão pensar.
Medo de dar tudo errado.
Medo de perder o controle.
Medo de nunca ter tido o controle.
Medo do porvir.
Medo de sentir culpa.
Medo de sentir.
É o medo que te corrompe.
Não há mal algum em sentir medo,
desde que isso não defina os seus dias.
O que há de melhor no mundo mora atrás do medo.
É preciso transpor seus medos para ter a recompensa do alívio,
para ganhar o presente do futuro.
O futuro não se constrói com medo.
Aliás, dizem que o futuro a Deus pertence...
E você só consegue tomar posse dele
quando se desapega do medo.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2008


Cada um sabe de suas urgências. São as prioridades que nos definem. Trabalho. Amor. Aparência. Dinheiro. Família. Estudo. Cada um sabe de suas urgências. Certas coisas não podem esperar. Prazos de validade expiram. Pessoas morrem. Ou mudam de idéia. Urgências não podem ser deixadas para amanhã, nem para daqui alguns minutos. As urgências são exigentes e cada um sabe de suas urgências. Quando algo não se faz urgente para nós é porque não significa tanto. Urgência substituída é caso de rebaixamento. Como no futebol. Só que as chances de voltar para nossa “série A” quase inexistem. Quando voltam, já terminou o campeonato. Cada um sabe de suas urgências. E eu já não quero saber das suas. Tenho coisas mais urgentes para tratar.

sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Em respeito ao povo catarinense




Pense em tudo o que você possui. Pense no tempo que levou para adquirir sua casa ou apartamento. Pense em quanto você separou do seu salário, mês a mês, para conseguir pagar a cozinha sob medida dos seus sonhos. Pense no quanto você desejou o jogo de sofá no qual senta confortavelmente todas as noites. Pense no último eletrodoméstico que você comprou, aquele cheio de funções. Visualize seu guarda-roupa cheio de opções, mesmo que você já tenha cansado da maioria delas. Lembre daquela caixa com medicamentos, para o caso de ter dor de cabeça ou azia. Repasse em sua memória tudo o que tem na sua geladeira. Pense nas fotos que retratam toda a sua vida. Nos presentes que você ganhou no último aniversário. Nos livros e CDs que você coleciona. No cobertor aos pés da cama para as noites mais frias. No computador diante do qual você passa tanto tempo. Nos seus pares de sapato, seus perfumes, seus quadros. Pense em tudo que te cerca quando você está em casa. Pense...

E agora tente imaginar como seria perder tudo isso. Perder para a água, para a terra, para a natureza. Ver a lama invadindo sua casa, tomando conta de cada peça, levando embora tudo o que você construiu. Não há tempo para despedidas. Não há resgate. Apenas tudo sendo arrancado de você. Suas roupas e suas histórias lavadas em lama e tristeza. Não há como pensar em um futuro bom, apenas no que se foi e não mais voltará. São olhos afundados na água tanto quanto as pernas. Frio que gela o corpo e o coração. Não há compensação. Só desolamento. A falta de tudo o que é seu. A procura pela referência do que você foi, do que você era. O caminho por um chão seco, por proteção. A esperança de secar as ruas e as lágrimas. A expectativa de um sol que não se sabe mais que cor tem.

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Mania de explicação


Fico me perguntando por que as pessoas gostam tanto de saber os porquês. As crianças, se soubessem o mal que lhes faria entender os motivos das coisas ou do que elas são feitas, escolheriam não passar pela fase dos porquês. Mas a gente insiste em querer respostas. E depois de obtê-las, costumamos bolar mais e mais perguntas. Carência de entendimento. Carência incurável, aliás. Às vezes é melhor não entender. Entender significa perder a magia do efeito. O encantamento desaparece quando sabemos como são feitas as coisas. É como desvendar o segredo da mágica e abrir mão do brilho nos olhos cheios de novidades. Melhor mesmo é não entender. Melhor um ponto de interrogação que um ponto final. Não quero o encerramento do ponto final. Quero a espera do que pode vir depois das reticências...

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

As coisas quebram


A gente passa a vida toda juntando, adquirindo, querendo coisas. Coisas que facilitam a vida. Coisas das quais a gente precisa todos os dias. Coisas que a gente empacota cuidadosamente quando faz uma mudança. Coisas que a gente considera indispensáveis. Coisas que a gente passa meses desejando até conseguir comprar. Coisas que a gente ganha. Coisas que a gente nem sabe de onde surgiram, mas estão ali, entre as suas coisas. Apenas coisas.

A gente guarda porque acha que, uma hora ou outra, vai precisar. A gente chega até a sentir ciúmes das nossas coisas. Por vezes deixamos de usá-las para preservá-las, para que durem mais. A gente se ressente quando empresta uma dessas coisas e nunca mais a recebe de volta. São coisas que adquirem história. Coisas que podem já estar ultrapassadas, mas às quais a gente se apega. Ainda assim, são apenas coisas.

Eu sempre gostei muito de coisas para a casa. Para a cozinha, mais especificamente. Ganhei e comprei muita coisa para equipar esse ambiente tão acolhedor do lar. Pratos, copos, taças, xícaras, fôrmas, potes. Tudo o que se pode imaginar. Pratos de sopa de um lado, pratos rasos de outro. Canecas à frente, xícaras pequenas de cafezinho mais atrás. Travessas redondas à esquerda, travessas retangulares à direita. Maiores embaixo, menores em cima. Organização conforme o uso e o gosto.

Jogo de pratos dado por um grupo de amigas, xícaras que foram presente da tia, travessa de herança materna. Sopeira do chá de panela, jogo de taças pago em prestações, a caneca favorita do chá. Tudo em seu devido lugar, cumprindo sua função sempre que necessário. Coisas que participaram de jantares românticos, brindes de aniversário, canja no dia em que a saúde deixou a desejar. Apenas coisas.

Então, de repente, como se cansadas do uso, as coisas cederam. O armário aéreo em que elas estavam cuidadosamente armazenadas cansou de sustentá-las e colocou tudo ao chão. Ele não poupou nem uma única pequena xícara de café. Desistiu de tudo. Todas as coisas de que tanto gostava, agora, não passavam de cacos no chão da minha cozinha. Cacos de todas as cores e de todos os tamanhos. Cacos que me feriram. Pedaços de coisas que perderam o significado no momento em que se partiram.

Tudo no chão, espalhado por todos os cantos e sob todos os móveis. Não consegui recolher os cacos naquele dia. Evitei o retorno à cozinha. Não queria lembrar de tudo o que tinha guardado naquele armário que preferiu o chão à parede em que estava suspenso. Só no dia seguinte comecei a juntar os pedaços. Alças de xícaras que se libertaram. A flor desenhada no prato desprendia suas pétalas. O fundo do copo sedento da água que acolhera. A melhor porcelana na mesma situação do pirex. Nada restou. Apenas o passado das coisas tão despedaçado quanto elas. Apenas coisas.


Disseram-me para comprar coisas novas. Afinal, coisas são substituíveis. Depois de ver tudo transformado em lixo reciclável, percebi que eu não precisava tanto assim das coisas. Deparei-me com todas as outras coisas ao meu redor e entendi, com toda a clareza, que eram apenas coisas. E que, no final das contas, todas elas não passam de cacos que ainda não se partiram. Cacos dispensáveis. Tudo se quebra. O importante e o fútil. Apenas coisas. E as coisas quebram.

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

O amante latino


Era, definitivamente, um homem sedutor. Apaixonara-se algumas vezes, desiludira-se outras poucas. Preferia aproveitar os momentos ao lado das mulheres. De várias mulheres. Gostava de todas elas. Conversava e ouvia a todas. Não prometia nada a nenhuma. Elas selecionavam palavras perdidas de contexto e as uniam, de modo que coubessem exatamente em seus sonhos com ele.

Ele desenvolvera o dom de seduzir. Convivera muito tempo com mulheres e sabia o que elas precisavam ouvir. E ele dizia, com seu sotaque espanhol, com a voz de quem sabe o que quer e quando quer. Despia as mulheres com seus olhos verdes e famintos. Tocava no lugar certo: de leve na nuca, com gentileza nas mãos, com volúpia na cintura.

Era fácil de as mulheres se apaixonarem por ele. Depois de passarem um tempo juntos, muito juntos, ele prosseguia com suas conquistas e julgava ter ganhado mais uma amiga. Mas, para ela, não havia amizade, havia desejo. Desejo de mais. Desejo de ser ainda o foco do olhar dele. Só que isso não acontecia. Se ele permanecesse com uma mulher por um período mais longo, certamente mantinha outras novas conquistas paralelamente. Sua fidelidade durava apenas o tempo de sua presença.

Era incorrigível e gostava de sê-lo. Não tinha a mínima intenção de mudar. Algumas mulheres, antes de serem apresentadas a ele, eram avisadas: não se apaixone, ele nunca será seu. Ele admirava todas elas: loiras, ruivas, morenas, altas, crespas, baixas... Todas tinham algo que lhe agradava.

Da última vez que foi visto, estava com uma morena de longos cabelos crespos e sem curvas salientes. Sem muita graça, em um primeiro olhar. Contavam-se os dias até que ele fosse visto com outra. Ao ser alertada, a morena disse que sabia o que estava fazendo. Ela insistiu nele, e ele, sem entender direito, deixou a situação se estender. Quando a deixava em casa, seguia o rumo para mais festas e não poupava seu talento. Quando ele marcava com outras, alegava uma terrível enxaqueca para ela.

Sem que ele desse muita importância, se viu trocando presentes de Dia dos Namorados com ela. Conhecera sua família e ela, a dele. Começaram a passar mais tempo juntos. Ele alertava aos amigos: vou dar mais um tempo e terminar com essa história. Não terminava. Começou a gostar. E, de vez em quando, ainda criava uns casos paralelos para não perder o hábito.

Numa das tantas noites calientes de amor, ela vestiu-se e avisou que estava de partida. Sairia da vida dele. Concluíra que estava perdendo seu tempo ao lado dele. Ele sentiu um certo alívio. Mas o alívio veio seguido de susto, de insegurança, de medo. Viu sua menina saindo, virando as costas para ele. Percebeu que nunca havia feito nada para merecê-la. Lembrou de todos os casos, de todas as mentiras mal contadas, de todas as vezes que a deixou esperando.

Percebeu-se carente dela. De uma hora para a outra, se deu conta de que não era mais um garoto e que acabara de perder a única mulher que o fazia sentir-se homem. Foi até ela. Contou-lhe tudo o que ela já sabia e mais. Explicou que nunca vira as coisas de forma tão clara: era ela. Mais ninguém. Nunca mais. Desculpou-se. Implorou. Ela cedeu. Estão completando 10 anos de vida em comum e ela está esperando o segundo filho. “Não se pode perder a fé nos homens”. É o que ela costuma dizer.

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Quando os olhos se entendem


Jantaram entre silêncios e olhares que não conheciam. Palavras de gente grande que escondem as crianças carentes de afago. Um toque tímido de mãos que alcança o coração. Frases ensaiadas que perderam o sentido na hora de serem ditas. O convencional em que se acreditava perdido no que a emoção designa.

É fácil punir de longe. Por telefone, as palavras cruéis fluem como se o alvo delas fosse realmente o aparelho. No espaço da ligação não cabem desculpas, apenas mágoas. O sofrimento é solitário, não tem cúmplices. Muito do que se quer dizer fica calado no peito. As lágrimas são sentidas apenas pelo travesseiro, que não consola. Perdem-se as forças e os sonhos. Perde-se o contato.

Mas agora estavam ali, frente a frente novamente. Tentavam lembrar o que os havia afastado, já que o último encontro terminara em um beijo. A palpitação e a lembrança do dia em que se conheceram. Mexem no suco, no guardanapo ou no enfeite da mesa para disfarçar a ansiedade. Mastigam e não sentem o gosto. A vontade de comer se encerrara no telefonema. Ela esconde o olhar em todas as outras cores do ambiente enquanto ele beija o perfil dela com os olhos. Ele levanta e o olhar dela o abraça silencioso. Ele repara no novo corte de cabelo dela. Ela cortou o cabelo para ele... “Será que ele notou?”

Demoram. Não conseguem falar tudo o que precisavam. Esquecem o que foi dito. Saem lado a lado e voltam para o caos imperceptível da rua. Ela não vê as pessoas correndo apressadas porque sentiu a mão dele em seu ombro. Ele esquece de seus horários porque finalmente a alcançou. Olham-se sem entender o que passara. Olham-se sem nada dizer. Quem se ama se entende pelo olhar. Ele beija os olhos dela. Agradece por eles lhe comunicarem que ela o ama. Seguem de mãos dadas para o resto de suas vidas. E sabem que lá não há lugar para telefones.

sábado, 8 de novembro de 2008

Os primeiros raios de sol...


Sempre sofri com um grave problema. É de nascença, eu sei. Para alguns, nem é problema. Por mais que eu tente, não será diferente. Sofro de uma brancura que me cobre, de ter quase a cor do leite, uma palidez lunar, como já me disseram. Não sou a única e sei que há casos piores que o meu. Mas é isso, uma herança genética da qual nunca conseguirei fugir.

É o tipo de brancura que se torna ainda mais branca quando resolve pegar os primeiros raios solares do verão. E quando isso acontece em uma cidade como Salvador, na Bahia, a minha palidez quase chega a cegar, perto de todas aquelas pessoas uniformemente bronzeadas, douradas, com cor de verão o ano todo.

E eu sempre me iludo achando que poderei ficar tão bronzeada quanto elas. Escolho uma cor na praia e a meta está traçada: quero ficar assim até o final do verão. Como é de se imaginar, isso nunca acontece. O que acontece são desastres típicos da estação para alguém tão clarinha quanto eu.

Preparo o kit-praia: protetor de todos os fatores, partindo do 15 (que minha dermatologista não leia isso!!), óculos, protetor labial, boné, canga, saída de banho, chinelo, biquíni e mais várias outras coisas que acabo não usando. Resolvo seguir o exemplo daquelas mulheres douradas estendidas ao sol e faço exatamente a mesma coisa: horas e horas em parceria com o astro dourado, num pacto secreto em que ele só me queimará sem machucar, devagar, mas com efeito; que, pelo menos em uma estação do ano, terei o privilégio de usar uma roupa branca sem parecer um fantasma.

Só que parece que o sol não concordou com as regras do pacto e resolveu ser cruel. Na hora, tudo parece estar sob controle. É a maior alegria afastar a alça do biquíni e ver que há uma discreta diferença entre a parte coberta e a exposta. Começo a me sentir íntima do sol e de suas manhas e deixo o resto das horas do dia surtir efeito.

Até chegar em casa e encontrar a primeira pessoa que não esteve na praia comigo: a cara de espanto, a exclamação “Meu Deus...” em tom de lamentação. Todo o orgulho adquirido por ter começado a mudar de tom começa a virar desconfiança de que algo saiu errado. E, como se fosse novidade, deparo-me diante do espelho. O estrago está feito. O que era para ser dourado virou a pior tonalidade de vermelho. Aquele vermelho que dói, que arde.

Banho frio e muito hidratante... Em que momento o sol me pegou desprevenida e fez isso comigo? “Deve ter sido durante as 5 horas que você ficou esparramada no sol”, alerta a sincera e irônica companhia de praia. Eu me boicotei. Fingi passar protetor, o que significa passar em algumas partes do corpo e deixar as outras a Deus dará... O resultado fica infinitamente pior. É um mapa-múndi mal desenhado em meu corpo como se o sol tivesse usado lápis-de-cor vermelho.

Mas não é apenas essas manchas amorfas espalhadas pelo corpo. É a dor que elas trazem. É tomar banho com medo de onde a água vai bater. É ter que escolher as roupas mais leves, quando a vontade é que a pele fique nua, sem contato com nada. É achar a posição para dormir sobre as escassas áreas do corpo que conseguiram a proteção do protetor solar. É limitar o abraço porque a ardência não diferencia o que é carinho. E o pior: é abdicar dos dias seguintes de praia e de sol por ter tentado desafiar a natureza logo no primeiro dia. E ficar com a voz do Pedro Bial repetindo a frase final de sua famosa mensagem: “Mas no protetor solar acredite”...

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Com o coração na mão


Você se recupera. Se você se queima, se você se corta, se você se machuca... você se recupera. O corpo está preparado para tapar feridas, para curá-las. Na maior parte das vezes, não fica nem cicatriz. Você logo se recupera de acidentes, queimaduras, quedas.


Você só não tem como prever quanto tempo levará para se recompor quando o corte é mais fundo. Quando é feito diretamente no seu coração. Você não sangra, não aparecem hematomas, não há marcas. Mas todo o sangue que circula em suas veias é o seu coração sangrando, chorando em vermelho.


Primeiro ele acelera. Recebe o golpe e quase não acredita que o acertaram. Acelera, ruboriza, treme. Só então você percebe que ele foi atingido. Depois vem a dor, a dor que é física, a falta de ar, o enjôo no estômago. Não há anticorpos para isso e nada mais funciona direito quando o coração é ferido. E aquela dor vai tomando conta... enche seus olhos, esvazia o olhar, emudece a boca, paralisa os gestos.


Não tem remédio. Não passa. Fica alojada e se faz lembrar a cada batida do triste coração. E tudo falta. Falta a fome, o sono, o sorriso. Falta o ar, o ânimo, a paz. Sem previsões. Sem lampejos de esperança. Talvez algumas promessas em que seu coração já não consegue acreditar.


Apenas a dor, o vazio e o tempo.


Não há medicina que cure.


A única chance de melhorar está naquilo pelo qual o seu coração ainda bate.

sexta-feira, 31 de outubro de 2008

My birthday


Ao contrário de muitas pessoas que não gostam de comemorar seus aniversários, eu sempre adorei quando chegava a data do meu. Talvez a época em que aniversario também ajude... quase verão, quase final de ano, quase ritmo de festa. Na verdade, já era um motivo para entrar de vez no ritmo de festas. Depois do meu aniversário, vinha o da minha irmã, o do meu irmão e logo já nos deparávamos com dezembro cheio de comemorações.

Além do mais, minha mãe sempre fez questão de mostrar o quanto a data era importante. Ela criava a expectativa. Por pior que fosse a situação financeira, sempre se fazia alguma coisa. Quando chegava a meia-noite da data do aniversário, ela e todo o resto da família iam dar os parabéns, mesmo que precisasse acordar o aniversariante para isso. Aquilo marcava o início do MEU dia. No dia 31 de outubro, eu me sentia a pessoa mais importante do mundo. Sempre adorei receber os telefonemas, as visitas, os presentes.

Existia uma outra convenção familiar na data do aniversário que era o privilégio de o aniversariante poder escolher o que gostaria de comer no almoço do seu dia. A gente passava os dias de véspera escolhendo o cardápio, pensando em pratos diferentes ou nos mais comuns, de acordo com o apetite. O desejo sempre era realizado, bem do jeito que a gente pedia.

A minha vida toda foi assim. Todos os anos. Hoje percebo que o que sempre tornou essa data tão especial para mim eram as pequenas tradições criadas pela minha mãe para a nossa família. Como qualquer outra tradição de que se goste, nós estamos passando adiante. Eu não, pois ainda não tenho a quem passar, mas meus irmãos fazem os mesmos rituais nos aniversários de seus filhos. Os vínculos familiares se ampliam nas tradições. E elas permanecem até hoje, não importa quantos anos estejamos completando.

É por isso que hoje, dia 31 de outubro, meu aniversário de 29 anos, minha escolha foi retornar à casa de minha mãe, às nossas singelas tradições, ao que me traz conforto. Afinal de contas, por mais longe que estejamos, por mais que viajemos e conheçamos gente, “there’s no place like home”...

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Para uma amiga nessa situação...


Início de relacionamento é sempre conflitante. É uma delícia, mas é conflitante. Vocês batem o olho um no outro, se gostam e aí vem toda aquela função de conquistas, de olhares, de respostas bem pensadas. O lado feminino da história acaba passando por dúvidas verdadeiramente cruéis. É ela quem limita até onde vai o primeiro encontro, não ele. Então tem que pensar se está a fim só de uns beijos ou se resolve deixar a mão dele – e a dela – ficar boba de vez. Se pára por aí ou se vai rolar sexo com esse stranger.

Passada essa fase e subentendendo que números de telefone foram trocados, a mulher entra na preocupação seguinte: será que ele vai ligar? Mesmo que ela tenha o telefone dele, não liga. É preciso ver o quão interessado ele está. E isso ela só saberá a partir do momento que ele ligar, o que pode ser na manhã seguinte, na tarde seguinte, na noite seguinte, na semana seguinte ou no ano seguinte (aí não preciso dizer mais nada, né? Não rolou.).

Se ele ligar, ela ainda tem que analisar se o tom dele é de quem realmente está interessado nela ou se o negócio para ele é só matar a fome – de sexo, claro! (há de se considerar todas as hipóteses). Aí resolvem sair juntos e a novela de escolher a roupa ideal começa. Casual ou elegantérrima? Sexy ou romântica? Moderna ou tradicional? Às vezes é necessário ter uma equipe de amigas para ajudar nessas decisões. Sem falar na questão prática sobre o pagamento da conta.

Se tudo isso correr bem, com resultados favoráveis aos dois, outros questionamentos tomam lugar nesse início de relação (que nem se definiu exatamente como relação ainda). Analisa-se cada palavra que é dita por telefone, e-mail, torpedo, MSN ou pessoalmente. Ela está descobrindo quem é o cara, então, fica ligada a tudo. Se acontece um imprevisto na vida desse homem que o impede de encontrá-la, ela provavelmente pensará que ele se desinteressou. Ela faz buscas no orkut, no google e em outras fontes mais seguras para ter referências do candidato a dono do seu coração.

Mostra fotos para as amigas para ver se aprovam. Revisa mentalmente as conversas que tiveram. Pergunta a ele sobre a família (e a resposta será algo definitivo). Pensa dez vezes antes de falar sobre o passado – dela e dele. Bola estratégias mirabolantes para fugir de outros compromissos e ficar um pouco mais com ele. Conta em detalhes cada novo evento do novíssimo casal para umas cinco amigas diferentes, para fazer um balanço de todas as opiniões. Tem palpitação. Começa imediatamente uma nova dieta. Fica perturbada se ele não mandou um beijo antes de desligar o telefone. Pensa que ele deve ser a maior farsa da história na primeira TPM.

São intensos os primeiros dias de um novo relacionamento. Nenhum dos dois sabe exatamente em que território está pisando. O perigo de se machucar é grande. Mais fácil é continuar sem ninguém, não ter esse tipo de preocupação dentre as tantas outras que já se tem sem um relacionamento. Mas verdade seja dita... O que todo mundo quer é a oportunidade de passar por esse tipo de conflito.

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Em mundos diferentes


Ela estava sempre muito bem acompanhada: Gucci, Louis Vuitton, Manolo Blahnik, Chanel. Ela não andava, desfilava nas ruas. Era como artista de novela e acordava já maquiada. Falava um pouco de francês, sabia um pouco de Milão, sonhava com muito de Nova York.

Ele estava sempre muito bem acompanhado: Dante, Borges, Machado, Shakespeare. Não andava pelas ruas, mas pelas páginas que lia. Sonhava com Beatriz, Capitu, Laura, Bovary. Estudou francês, italiano, inglês e espanhol.

Encontraram-se em uma livraria-café. Ele buscava por Sartre. Ela, por um presente para a mãe. Ele recomendou Drummond. Ela comprou dois e ficou para um café com ele. O dela, descafeinado. O dele, com leite. Ela pensou que um banho de loja faria bem a ele. Gostou do desafio. Ele pensou que umas boas dicas de leitura fariam bem a ela. E gostou do desafio.

Faziam trocas. Espiavam o universo um do outro. Ele mostrou sua coleção de LPs. Ela mostrou sua coleção de sapatos. Estavam aprendendo um com o outro. Até que, entre frases de Boccaccio e batons da Lancôme, os gostos se uniram. Ele deixou a timidez de lado e ela desfez o penteado.

O beijo apagou as diferenças. As mãos trêmulas dele percorrendo o corpo dela, despindo-a de todas as grifes. A língua dela alisando os dentes dele, deixando-o sem palavras. No amor, não há espaço para a moda. Tampouco para a literatura. No amor, só há espaço para as almas. E as almas dos dois se amaram.

Em meio aos abraços e sorrisos, era hora de partir. Ele ia para um sarau literário. Ela ia para o shopping. Ela fazia escova no cabelo enquanto ele se vestia. Ele saiu primeiro, deixou um recado de amor para ela. Ela viu o recado, ao lado do casaco que ele esquecera. Não conseguiu ler. Não tirava os olhos do casaco. De péssimo gosto.

Ela sabia que era o casaco preferido dele. Mas nada ajudava: a cor, o corte, o tecido. Tudo ruim. Que tipo de pessoa compraria um casaco assim? Nunca, em uma noite fria, ele poderia cobri-la com aquilo. Percebeu que nenhuma poesia tornaria o casaco melhor. Ou o dono do casaco.

Foi ao encontro dele. Precisava falar. Ela chegou em meio à leitura dele. Interpretava James Joyce. Ele a viu: loira, maquiada, com uma bolsa roxa pendurada no ombro e o casaco dele no outro braço. Lia um trecho de Ulisses e pensava que aquela mulher nunca se interessaria por Bloom, nem por Bentinho, tampouco por Pedro Missioneiro. E eles queriam olhos interessados. Queriam a leitura atenta e preliminares feitas de palavras.

Todos partiram e eles ficaram. Não precisaram explicar. Ele pegou o casaco. Ela olhou para o enorme livro que ele tinha em mãos. Ele soube que o conteúdo dela era outro. Ela seguiu seu caminho para o shopping. Ele foi assistir Lars von Trier. Não adiantava. Os opostos só se atraem de verdade no mundo Físico.

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Movies


Já que eu falei de um filme no último post, resolvi permanecer no tema. Todo mundo tem suas preferências, suas cenas preferidas, trilhas sonoras que escuta sempre, cenas de amor, de drama... Todo mundo, inclusive eu. Já que hoje é sexta-feira, com o final de semana chegando, talvez alguém possa se servir dos títulos que listo aqui.

Pra começo de conversa, tem alguns atores que sempre fazem filmes bons. Se vou na locadora e vejo que a criatura está no elenco, pego sem nem olhar o título do filme direito. Um desses casos é o da Nicole Kidman, que fez filmes como “Moulin Rouge” (o que valeria comentários pela trilha sonora... Especialmente a versão da música “Roxanne”, que adoro!), “Dogville” (esse rende toda uma crônica à parte), “Os outros”. Mas citei a loira-linda-maravilhosa porque é com ela que se passam duas cenas que acho brilhantes. A interpretação dela é, simplesmente, perfeita. Uma delas está no clássico “As horas” (no qual ela interpreta Virginia Woolf, personagem que, inclusive, lhe rendeu o Oscar em 2002, merecidamente). Enfim, a cena que não me canso de olhar é quando ela e o marido estão na estação de trem, pois ela decidiu ir embora. Há, aí, uma conversa sobre direitos humanos, sobre liberdade, sobre vida, e, no fim das contas, acaba sendo uma das melhores demonstrações de amor de um homem para uma mulher. Vale a pena ver para entender melhor do que estou falando.

Para falar de um filme mais leve – lindo – o melhor exemplo que me ocorre é “O fabuloso destino de Amelie Poulain”, filme francês, e de uma magia de cores, de falas, de conclusões, de simultaneidade... É um dos meus favoritos, com certeza. E nada melhor para me inspirar que a trilha sonora, que é de responsabilidade de Yann Tiersen. Eu, com meu olhar romantizado sobre as coisas e as pessoas, acho que todo mundo tem um pouco de Amelie Poulain, pois todo mundo pode sempre transformar a vida de alguém.

E já que o assunto migrou para a França, lembrei de outro filme que assisti recentemente, “Angel-A”, de Luc Besson. O ator principal, aliás, também atua em “Amelie”, Jamel Debbouze, e a interpretação dele está muito boa. O que começa como algo mais para policial, termina mais para Conto de Fadas. No mínimo, diferente.

Ah! E eu não poderia deixar de falar em “Ensaio sobre a cegueira”, do Fernando Meirelles. Estava ansiosa para ver o resultado na telona, já que foi baseado no livro (do José Saramago) que marcou muito a minha vida. A sensação que tive ao final do filme foi a mesma que tive ao final do livro. Um soco no estômago. É perceber o quanto somos apegados a coisas que não são importantes e o ponto em que a humanidade chega – não apenas em situação de cegueira. Apesar de todas as críticas que têm feito por aí, eu adorei! Já tinha gostado do trabalho dele em “O jardineiro fiel” e, agora, o admiro um pouco mais.

Falando em diretores brasileiros, outro que muito me agrada é o Walter Salles. Além de ser um charme, o cara mandou muito bem em “Diários de motocicleta”, em “Abril despedaçado” e “Central do Brasil”, claro. O primeiro dos três está entre os que assisto e re-assisto, não apenas pelo bom moço Gael, mas por todo esse outro olhar sobre a história de Che (antes de ser o Che revolucionário de que sempre se teve notícia), embalado pelo trilha sonora maravilhosa do Jorge Drexler.

Se o idioma é espanhol, impossível não lembrar de “Mar adentro” e do simpático “Valentín”. O primeiro foi vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro e traz Javier Bardem como o tetraplégico que luta pelo direito de morrer. O segundo é uma gracinha! Vontade de levar o Valentín (Rodrigo Noya) pra casa! O gurizinho mora com a avó e o pai o visita de vez em quando. Nessa falta de família, ele tem essa busca por uma figura de mãe que ele nunca conheceu. As idéias infantis dele são lindas e o pequeno argentino realmente soube interpretar muito bem o personagem principal.

Tô lembrando de mais um monte de filmes para comentar: “A pele”, “A vida dos outros”, “O escafandro e a borboleta”, “Lavoura Arcaica”... Ih! Muita coisa! Mas fico por aqui. Ou pela locadora, escolhendo o que vou ver no final de semana...

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Love and the city


Tenho que confessar: sou uma cinéfila incorrigível. Adoro cinema, gostaria inclusive de ter tempo de estudar mais sobre a sétima arte. Gosto da telona e da telinha na minha casa. Gosto de ver os trailers, presto atenção nas trilhas sonoras, decoro as falas de alguns de meus filmes favoritos. Acho até que posso considerar a hipótese de dizer que choro mais em filmes do que na vida real. Todas as dicas de novos – ou velhos – títulos são bem-vindas.

Assisti, nessa semana, a um filme que muita gente pode não gostar. Minhas amigas já tinham visto e algumas indicaram. Meus amigos refugaram. Eu, como espectadora da série de televisão, não poderia deixar de ver “Sex and the city – O filme”. Não sou do tipo ligada à moda, mas sou do tipo ligada ao pensamento feminino, coisa que a personagem Carrie sabe expressar muito bem, na minha opinião.

No filme, as quatro personagens que figuraram por tantos anos na série de TV, como todo e qualquer mortal, envelheceram. Na TV, elas são as mulheres nova-iorquinas de 30 anos. No filme, as de 40. A mim, pareceu muito legítimo, uma vez que a mudança de idade também ocorreu – e como evitar? – com as telespectadoras. E é aos 41 anos que Carrie se vê enredada nos preparativos para o casamento. Não qualquer casamento, mas um suntuoso, gigantesco casamento, com tudo aquilo com que a gente pensa que qualquer mulher sonha: vestido de grife, ornamentos originais, a melhor decoração, o melhor organizador de festas e as amigas acompanhando tudo.

Tudo perfeito, exceto pelo fato de o casamento não se efetivar. O cara desiste na hora agá. Trava. Mostra-se totalmente inseguro diante de toda aquela estrutura, ou, nas palavras dele, “circo”. Ele fica, nos últimos instantes, esperando por um “sinal”... que não vem. Todos os convidados esperando, ela totalmente produzida, e ele parte. Parte o coração dela em mil pedaços, claro.

Entendo a apreensão dele. Entendo a desilusão dela. E o melhor estava por vir, mas, aí, você tem que ver o final do filme para saber. Porque esses eventos (que podem acontecer na vida da gente também) acabam desvelando algo em nossas vidas. Em princípio, tudo parece péssimo. Mas a situação vai se mostrando diferente com o tempo, especialmente para as mulheres.

As mulheres crescem ouvindo e acreditando em Contos de Fadas. Elas querem ser a Cinderela. Elas começam a esperar pelo Príncipe Encantado. E demora para perceberem que é uma espera vã. Elas sentem-se como saídas dos livros infantis, mas eles continuam lá, presos nas páginas do “E viveram felizes para sempre”.

No fundo, todas as mulheres gostariam de viver felizes para sempre. E os homens também – e por que não? Mas as coisas não funcionam dessa maneira. Os Príncipes e as Princesas são adaptados. Ele não virá em um cavalo branco. Pode ser em uma bicicleta. Ela não usa sapatinho de cristal, mas uma rasteirinha fica bem com aquele jeans.

E mais... Para ser feliz – ou tentar – a gente não é obrigado a seguir o padrão de um lindo casamento, cheio de testemunhas, de votos, de flores e da pureza ultrapassada do branco. Convenhamos... Nem sempre dão certo. A quantos desses casamentos maravilhosos você já foi, cujo casal, hoje em dia, já está bem separado e até vivendo suas vidas com outras pessoas?

Não estou dizendo que não podem dar certo. Podem. Mas a cerimônia pomposa não é sinônimo de sucesso matrimonial. Na real, o que pode fazer funcionar é a boa vontade dos dois, não a roupa que eles usam no momento em que decidem passar o resto da vida juntos. E tomar essa decisão é muito importante, mas independe do lugar em que acontece. Pode ser no meio de uma festa, no aconchego da cama, na igreja ou até num cartório, desde que seja feita de todo o coração.

Eu, como exemplar vítima – em recuperação – do Complexo de Cinderela, bem que gostaria de acreditar em casamento. Mas, desculpa, eu não acredito. Acredito em pessoas. Acredito no amor entre as pessoas. Mas, a meu ver, nem padre nem papel algum podem garantir a continuidade desse amor. Não adianta fugir: it’s up to you.

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Memorial


De repente, por motivos meramente burocráticos, fui obrigada a escrever sobre minha própria vida. O nome que deram a isso foi “Memorial”. Essa palavra é relativa à memória, ao que faz lembrar... E o que a gente lembra é o que é importante para a gente. Assim, me vi obrigada a fazer uma seleção de memórias. Já escrevi uma biografia, sei que é tarefa difícil. Mas o fator facilitador é o fato de eu não ter uma vida que renda uma biografia – não ainda.

Na medida em que fui escrevendo, as recordações foram fluindo. Um fato interligado a outro. Causa-conseqüência. A maneira como as coisas foram acontecendo em minha vida. O que foi escolha minha e o que não dependia de mim. A seleção de pessoas que precisei fazer. Não cabiam todas.

Enquadrei o que vivi até aqui em cinco páginas. Em cinco breves páginas pude falar do meu nascimento, da minha família, das minhas mudanças, dos meus estudos, dos meus amores e meus trabalhos. Tudo em cinco páginas. Fatos concomitantes. Tristezas isoladas. Conquistas. Perdas. Tudo o que tem na vida de todo mundo. E, no final, ainda tinha que colocar uma certa perspectiva de futuro.

Estabelecer planos, metas, objetivos. Explicar os porquês. Justificar a vida toda por um objetivo. Enquanto escrevia, pensei no que os possíveis leitores daquele memorial poderiam pensar. Depois achei melhor parar de pensar nisso para não influenciar a escrita sincera de quem eu sou, do que já fiz.

Dias atrás, um amigo perguntou “Quem é você, na verdade?”. Não consegui responder. O tal memorial também não responderia. Isso só pode ser porque provavelmente ainda estou tentando descobrir. Andei pensando, também, que há dez anos saí da cidade em que voto. Nunca transferi meu título de eleitor. Ainda não tenho vontade de fazê-lo. Transferir o título é fixar um lugar. E eu ainda não defini qual é o meu lugar. Talvez não defina tão cedo, tampouco responda com certeza absoluta a pergunta do meu amigo. Definir quem eu sou seria deixar de mudar. E uma escorpiana como eu precisa de mudanças. Nem que seja para colocar num memorial depois.

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

Não se acostume


– Quando é que você vai se acostumar comigo? – gritava ela para o namorado.

Taí algo que eu não quero: que se acostumem comigo. Quem se acostuma com você já perdeu o encantamento, já não te olha com olhos de novidade. Já te desvendou. Conhece todas as tuas histórias. Todas as manias e todos os sonhos. E isso não tem graça.

Por que ele deveria se acostumar com ela? Para não se surpreender mais com seus sorrisos ou com suas lágrimas? Para não vibrar quando vê o número dela chamando em seu celular? Para não ficar horas tentando imaginar com que roupa ela estará quando se encontrarem mais tarde? Para não ter mais o que perguntar a não ser “como foi o dia”?

Não deixe que as pessoas se acostumem com você, especialmente se a outra pessoa for seu par – da dança, da vida, do amor. Não deixe que seu par saiba sempre qual será seu próximo passo, sua próxima palavra, seu próximo beijo. Ele perderá a vontade de conduzir, de tentar adivinhar o que você quer falar, de ficar com os lábios entreabertos na esperança de que você o beije.

Acostumar-se com alguém é deixar de ver as coisas novas que todo mundo sempre tem, por menores que sejam. É não reparar nas mudanças de tom de voz, na roupa nova, no corte no dedo, no suspiro que transmite mensagens. Acostumar-se com o outro é não prestar mais atenção.

Coisa boa alguém que tenha curiosidade sobre você! Alguém que, mesmo te conhecendo em detalhes, ainda encontre novas minúcias suas para se encantar, para se apaixonar, ou melhor, se reapaixonar. Não ver mais nada de diferente no outro é ficar cego para o que outrora iluminou o olhar.

Enquanto ainda se percebe um modo de sorrir diferente, um novo jeito de arrumar o cabelo, uma mudança de idéia sobre um assunto... ainda não virou hábito, não é costume. Mesmo com rotina, mesmo com problemas, mesmo com mil coisas para resolver, ainda assim é possível se surpreender com algo inusitado no outro, que você não conhecia. Pode ser até algo ruim, mas, de qualquer forma, é novidade.

A gente sempre precisa de novidade. Todo mundo precisa. E o melhor de tudo é quando a gente é novidade para alguém. Por muito tempo.

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

A velha guerra entre os sexos...


Há horas estou para escrever sobre isso. Prometi a uma leitora que está do outro lado do Oceano Atlântico e hoje, com forte inspiração na conversa que tive com um querido amigo, resolvi, finalmente, expor minha opinião sobre o assunto.

Lamento para quem defende o contrário, mas eu acredito na diferença entre os sexos. Homens e mulheres não são iguais. Não pensam da mesma forma. Não agem do mesmo jeito. Às vezes, o melhor é um não se intrometer no universo do outro.

Admiro as mulheres que encaram profissões reconhecidamente masculinas. São muito corajosas por isso. Têm todos os méritos, todos os meus louvores. Mas não posso dizer que, na minha opinião, elas não saem perdendo por isso.

Já li Simone de Beauvoir. Leila Diniz é tudo de bom. E insisto na idéia de que as mulheres são melhores como mulheres que como tentativas frustradas de homens. Esclareço: há homens que são, igualmente, tentativas muito frustradas de mulheres. O que penso é que as mulheres não deveriam perder o que as diferencia: a feminilidade. Elas não precisam ser feministas para serem femininas. Nem precisam deixar de ser femininas para serem feministas. O equilíbrio possivelmente ainda seja a dose ideal.

Não quero dizer que todas precisem usar cabelos longos, unhas compridas, salto alto e maquiagem. O fato de não usar nada disso não tornará a mulher menos feminina. As atitudes dela é que podem surtir esse efeito. Atitudes de quem pode tudo sem precisar de ninguém. Todo mundo precisa de alguém, seja homem ou mulher. Acontece que algumas mulheres tentam tão arduamente mostrar que são iguais aos homens ou superiores a eles, que acabam esquecendo de que são, antes de tudo, seres-humanos. E o ser - humano é frágil.

Lembro sempre de uma amiga minha que gosta de mulheres. Nesse caso, quando digo “gosta”, é gostar mesmo, ter atração por mulheres. Ela disse que, depois de ter resolvido a questão da homossexualidade em sua cabeça, tinha se tornado muito mais vaidosa, muito mais feminina. “Afinal de contas, eu gosto de mulher. Se eu gostasse de mulher com jeito de homem, seria mais fácil pegar um homem, ora!”. Faz muito sentido.

Então, não acho que as mulheres, por expressarem traços de sua feminilidade, tornem-se submissas a uma sociedade patriarcal. Tolice! É exercendo sua feminilidade que se impõem como mulheres, diferentes de seus homens. Nossa cultura pode ainda ser machista, mas ela não tem como esconder os inúmeros atributos de suas mulheres. A capacidade de gerar vida, a sensibilidade, o formato do corpo, a valorização dele, a inteligência diferenciada. Não acho que homens e mulheres tenham os mesmos papéis nessa grande novela mexicana em que vivemos. Eu só não vejo mal algum em assumir o papel de mulher, como se ele não fosse, também, um dos protagonistas. Afinal de contas, o que seria do grande herói se não existisse uma mocinha que faça tudo valer a pena?

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

A melhor professora do mundo

Em algum momento de nossas vidas, alguém teve a paciência de nos ensinar o que sabemos hoje. Em algum momento, aprendemos a esperar, aprendemos a amar, aprendemos a nos cuidar. Em algum momento mais remoto, aprendemos coisas mais básicas, como andar, falar, fazer um laço no cadarço. E existe aquele momento, mais especial para alguns que para outros, em que aprendemos a escrever.

Honestamente, não lembro o que aprendi primeiro: se ler ou escrever. Podem ter sido aprendizagens simultâneas. Mas lembro do quanto desejei aprender. Lembro de ser a última entre quatro filhos, a única que ainda não sabia escrever. Lembro de quando minha irmã brincava de escolinha e eu era sua única aluna. Ela não tinha muita paciência, mas eu queria tanto, que nem ligava.

E lembro da minha ânsia em ingressar na escola. Não fiz pré-escola, nem jardim de infância, nada dessas coisas. Meu primeiro contato com a educação formal já foi logo na primeira série. Material escolar todo novinho, tantas outras crianças da minha idade e a primeira professora entrando na sala de aula.

Eu fazia de tudo para agradá-la, para não desapontá-la. Queria que os olhos dela fossem só para mim. Queria todos os elogios, todas as boas notas que ela poderia me dar. Odiava quando ela me chamava a atenção... pela letra, por respirar pela boca, por conversar fora de hora. E me policiava o tempo todo para chamá-la pela designação certa: “professora”. Sei que muitas crianças têm a tendência a confundir a maneira como chamam suas educadoras. Às vezes sai “tia” ou “mãe” sem querer. Toda professora é um pouco maternal. Mas meu medo de confundir era fundamentado. Minha primeira professora era a minha mãe.

Foi pelas mãos da minha mãe que tracei as primeiras letras. Foi ela quem me ensinou a escrever meu nome tão longo e complicado, com um “w” que nem fazia parte do meu alfabeto. Enquanto ela preparava a aula do dia seguinte em casa, eu tinha que ficar no quarto estudando. Nada de mamata por ser a filha da professora. Eu tinha a melhor mãe do mundo em casa, ia até a escola com ela e, lá, ela se transformava na melhor professora do mundo.

Hoje eu lembro das duas maiores frustrações que tive naquele primeiro ano escolar. Uma delas foi ter visto meu pai na escola. Meu coração acelerou e repassei minhas atitudes mil vezes na memória, pensando no que eu poderia ter feito de errado para a professora ter chamado meu pai. Não via a esposa falando algo com o marido. Era a professora com o pai de uma aluna.

Mas pior que isso foi o dia em que vi todos os outros alunos dando presentes para a professora. Um presente melhor que o outro! Todos dando beijos, cartões e presentes, menos eu. Ninguém em casa tinha me avisado que era Dia dos Professores. Minha mãe não quis cometer o ato de vaidade de pensar em um presente para ela própria. E fiquei ali, assistindo aos agrados dos colegas, enquanto eu estava de mãos vazias.

A solução foi ir ao banheiro e fazer muitos desenhos e escrever muitas frases para ela. Ela tinha que saber que eu a amava como professora. Tinha que ganhar algo vindo de mim também. Naquele dia, enchi minha professora de papéis nos quais coloquei toda a minha admiração por ela. Meu coração ficou em paz. E permanece nessa paz até hoje, sabendo que todos aqueles cartões, todas aquelas palavras que escrevi são ainda guardados pela minha primeira professora.

E assim foi com tudo mais que continuei escrevendo para ela. Os cartões de Dia dos Professores, de Dia das Mães, de Páscoa, de Natal, de Aniversário. Tudo guardado. Nada descartado. O que ela não sabe é que fez muito mais do que me ensinar a escrever. Ela lia o que eu escrevia. E valorizava. É, aliás, o que ela ainda faz com cada uma das minhas palavras. Minha mãe, minha primeira professora, minha sempre primeira leitora... As letras chegaram a mim através das mãos da minha mãe. E se eu continuo escrevendo, é apenas na tentativa de que as minhas palavras se transformem sempre em mensagens de amor a ela.

terça-feira, 14 de outubro de 2008

O que eu quero


Eu quero a marca dos teus dedos nas bordas dos meus livros e na imagem do meu rosto nas fotografias.

Quero o teu gosto pelos tons de verde espalhado pelo meu banheiro.

Quero teu perfume perdido em minha sala quando sais.

Quero tua música eletrônica no meu ouvido.

Quero tua saliva no meu travesseiro.

Quero tua camiseta escorada na minha cadeira.

Quero tuas revistas na minha cabeceira.

Quero tuas fotos no meu álbum.

Quero teus sapatos fazendo pares com os meus.

Quero teu reflexo no meu espelho.

Quero teu casaco enlaçando minha camisa no cabide.

Quero a tua voz como meu despertador.

Quero o teu alimento na minha geladeira.

Quero a tua letra na minha lista de compras.

Quero teus pêlos nos meus lençóis.

Quero teu ar no meu ambiente.

Quero a tua vida indissoluvelmente na minha.

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

A temperatura ideal


Você é movido pela lembrança do aroma, por lembrar da sensação boa, prazerosa. Então você dá um jeito. Levanta de onde está, pega a quantidade de água que vai usar, coloca no recipiente. Abre a tampa atrás da qual está um dos melhores cheiros que você conhece. Conta as colheradas, liga a máquina e a deixa fazer seu trabalho: preparar o café que seus sentidos desejam.

Você escolhe a xícara preferida, coloca a medida exata de açúcar para que não fique nem doce nem amargo demais. Transfere o líquido preto para a xícara e o vê dissolvendo os grãos do doce, enquanto você mexe para preparar o primeiro gole. Toma a xícara com as duas mãos, para que não lhe escape e, mais que isso, para que o calor da bebida chegue à sua pele antes de chegar à boca.

O primeiro gole, a sensação de conforto, de aconchego, o aroma que embriaga. Que excelente decisão essa de preparar um café. Você senta no canto favorito da sala e abre o livro que tem agradado suas idéias por alguns dias. E continua degustando... o café e o livro. Momento perfeito. Não há nada faltando. Nada mais que você deseje naquele momento.

Até que, sem que você perceba, o próximo gole começa a fazer toda a diferença. Você larga o livro e olha para a xícara. Suas mãos não sentem mais o calor. O líquido encosta em seus lábios, em sua língua, e não restam mais dúvidas: esfriou.

De um gole para outro, o café esfriou. Passou do ponto em que estava na temperatura ideal e entrou para o seu setor particular de problemas a resolver. Café frio não tem graça. Aquecer piora. Você não vê outra alternativa a não ser se desfazer do que, por um tempo, lhe fez tanto bem. Você o deixa de lado. Quando tiver tempo e vontade, leva o resto para a cozinha, para o ralo da pia. Lamenta... Se tivesse tomado mais rápido, se não tivesse servido tanto. Mas, agora, já era. O timing passou.

Às vezes o amor é como o café. Você se empenha para prepará-lo, seu corpo consegue até sentir o gosto com antecedência. Tudo vale a pena. Você se doa para ter todo o prazer que o amor pode lhe dar. Você cuida para não colocar nem água demais, nem açúcar de menos. Você quer que tudo seja perfeito. E você consegue. Você chega naquele ponto em que nada mais importa, só aquele instante. Em que a sensação de conforto e o bem-estar tomam conta de você. O amor é a bebida que sacia todas as suas sedes.

Mas aí chega um ponto – você não sabe como, você não viu chegar – chega o ponto em que o amor passou do tempo. Esfriou. Você pode até tentar aquecê-lo, mas o gosto não será mais o mesmo. Você olha, toca, mas não sente mais o calor, o bem-estar. E desvia sua atenção para qualquer outra coisa que esteja fazendo. Até ter o tempo – e a coragem – de se desfazer daquele amor que também lhe fez tanto bem.

Você seguiu a receita, você deu o que tinha de melhor, você teve os bons momentos pelos quais esperara. Você pensa... Se não tivesse esperado tanto... Se tivesse tentado mais... Mas o timing, realmente, já era.

Falta decidir o que fazer com o que ficou, com aquilo que você já não quer mais. Você olha, pensa, pondera. Mas sabe o que deve fazer. Nada que o ralo da sua pia já não conheça.

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Lembrar-me


Existe uma invenção da modernidade que deve ter sido criada para tirar o sono das pessoas. Ela é baseada em princípios muito fortes e, por vezes, cruéis. Um deles muito me intriga: “Ninguém é insubstituível”.

É assim que o tal Mercado de Trabalho nos vê. Melhor exemplo disso foi na ocasião em que “tomei posse” de um computador antes usado por uma pessoa que se desligou da empresa. Ao cadastrar meu usuário de MSN, tive que clicar na opção “Esquecer-me”. Desse modo, não seria mais o usuário dela a aparecer, mas o meu.

Demorei para usar esse recurso do “Esquecer-me”. Era como corroborar para que tudo o que ela fez fosse esquecido. E pior... Mais dia, menos dia, será esquecido. Ninguém mais lembrará de quantas e quais foram as pessoas que passaram por esse computador.

Alguém vem em nosso lugar e faz os que a gente fazia. Talvez faça até melhor. Só não venham me dizer que ninguém é insubstituível. Para mim, as pessoas são, de fato, insubstituíveis. Não tentemos usar sempre a tecla “Esquecer-me”.

Não esqueçamos do modo de olhar – único – de cada um que já conviveu conosco. O modo de fazer seu trabalho – ninguém mais fará exatamente do mesmo jeito. O bom ou o mau-humor. A maneira como nos sentimos na presença do outro. Coisas que não são substituíveis. Até porque, no fim das contas, ainda tenho a esperança de que a tecla “Esquecer-me” só funcione mesmo no MSN.

terça-feira, 7 de outubro de 2008

Quando é preciso escolher




Não há mais como adiar. Chegou o momento em que preciso escolher. Não posso continuar com os dois. Não sei lidar com essa situação. Ter que dar atenção para os dois. Saber que ambos precisam de mim e eu nessa dupla cilada.

Não sei fingir. Como olhar para os olhos de um sem lembrar de tudo o que o outro é, de tudo o que ainda posso ter com o outro. E quando acho que estou me decidindo pelo outro, penso também em todas as coisas boas do primeiro. Tenho que reconhecer as qualidades de cada um.

Vou para a cama pensando nisso, lembrando de um e de outro, sabendo que não há lugar para os dois ali. Que meu mundo é pequeno demais para nós três. E que a sociedade toda também não aceita que eu fique com os dois.

Não posso mais fingir que um não sabe do outro. Eu sei que sabem. Mas preferem fazer de conta que não. Um se sente ameaçado pelo outro, claro. Eles sabem que meu coração está dividido. Sabem que eu não tenho certeza do que quero.

Seria mais fácil se eu não tivesse me colocado nessa situação. Mas a gente não percebe quando está entrando em algo assim. Vai se deixando envolver pelas doces palavras, pelas promessas felizes, pela esperança de segurança, de amparo, de sentir-se bem.

Eu poderia dizer que seria mais fácil se alguém escolhesse por mim. Se alguém pesasse os prós e contras de cada um deles e me dissesse com toda a segurança: esse é o melhor para você. Mas não funciona assim.

Não posso fugir da decisão que me cabe tomar. E terá que ser logo. O melhor é não pensar em quem poderei magoar. Alguém sempre sai magoado em triângulos assim. Vou ter que ser egoísta. Tenho que pensar no que será melhor para mim. Mesmo não sendo uma decisão fácil, é inadiável. Tenho que escolher entre os dois nessas eleições.

sábado, 4 de outubro de 2008

Lovers


Romeu se envenenou e Julieta deixou seu coração em uma adaga

Abelardo foi castrado e Heloísa virou freira

Sansão revelou seu segredo e perdeu suas forças

Páris desencadeou uma guerra por Helena

Marco Antônio perdeu terras e batalhas, e Cleópatra deixou-se picar por uma serpente

Werther também se suicidou por Charlotte

Lutero rompeu com a Igreja Católica e casou-se com Catarina

Medéia matou o próprio irmão para ajudar o amado Jasão

Francesca e Paolo passaram a eternidade no Círculo da Luxúria porque se apaixonaram na hora errada

Falando na Divina Comédia, Dante não encontrou lugar nelhor para sua Beatriz que o Paraíso

Shah Jahan mandou construir o Taj Mahal para sua esposa favorita

Lancelot traiu seu Rei Artur ao manter um caso com Guinevere

A freira Mariana Alcoforado escreveu as mais lindas cartas de amor do mundo pelo seu amor proibido

Não entendo por que ainda dizem que o meu amor é que é exigente...

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

Don't ask


Louça acumulada.

Cama desarrumada.

Copos espalhados pela casa.

Já comi tudo o que tinha na geladeira.

Não troco de roupa, mas de pijama.

Não entro mais no MSN.

Horário indeterminado para dormir.

Cabelo cada vez mais bagunçado.

Unhas por fazer.

Olheiras tomando conta do rosto.

Devendo telefonemas para todo mundo.

E e-mails também.

Não fui mais pro yôga.

Já esqueci o caminho da academia.

Dor nos punhos.

Letras trocadas.

Coluna detonada.

Palidez.

Não me pergunte das últimas notícias.

Nem que novelas estão no ar.
Tampouco sobre a crise nos EUA.

Não pergunte.

Sim... Meu prazo está acabando.


terça-feira, 30 de setembro de 2008

Com mãe não se discute


Passou uns dias com a mãe. Mesmo as mães precisam passar alguns dias com suas próprias mães. Agora se entendem muito melhor. Falam a mesma língua: a língua da maternidade. Sabem receitar remédios como o melhor dos médicos, sabem curar uma dor com um beijo, sabem repreender com um olhar. Sabem, sem nunca terem dito nada, que existe algo maior na vida que ter sucesso, ter dinheiro, ter marido, ter o melhor corpo. Existe o filho. A vida que só elas poderiam ter colocado no mundo.

Fez as malas, organizou as roupas, as fraldas, os brinquedos de borracha. Pegou a maquiagem, a chupeta e a pasta do trabalho. Mala, bolsa de viagem, bolsa de bebê. Agasalhou bem a criança, despediu-se da casa que abriga seu passado. Levava seu futuro nos braços.

Filas, esperas, embarque. Apresentou todos os documentos. Carteira de identidade, cópia da certidão de nascimento da filha, passagem das duas. Seu embarque foi barrado. Não aceitam cópias. Só documentos originais. Àquela hora da noite, todas as outras pessoas embarcando e ela ali, com a filha agarrando sua perna. Não aceitam cópias... Como se mãe fosse coisa que se copiasse.

Ela insistiu, ela implorou, ela tremia. Não cederam. Ela tocava no braço do responsável, apelou para a sensibilidade, telefonou para quem não pôde ajudá-la. Nada adiantou. A criança começou a chorar. Pedia colo. Ela pegava a filha, alisava seus cabelos, olhava em seus olhos e dizia: “Vai ficar tudo bem”. Continuava argumentando. “É minha filha, moço”.

Com a menina no colo, balançava a cabeça, desolada, e falava “Alguém precisa me ajudar”. Só as palavras de uma mãe para surtirem efeito com tamanha eficiência. A partir dali, quem continuou a conversa foi um advogado que passava e se solidarizou com aquela jovem mãe, que tinha a cópia da certidão e a original da angústia materna.

Ele conversou, explicou, deu seu nome em garantia. Assinou um termo de responsabilidade. Responsabilidade por acreditar no que aquela mulher dizia. De acreditar que a menina não se entregaria daquela forma aos braços de mais ninguém, exceto os da mãe. Essa era a prova de que precisava.

Foi a última a embarcar. Andava por entre os outros passageiros, abraçada na filha, e dizendo baixinho: “Está tudo bem agora”. Ela teve medo. Ela achou que não conseguiria. Ela sentiu o que qualquer pessoa sentiria. A diferença é que ela estava no papel de mãe. E mãe não desiste. Mãe dá um jeito. Mesmo que seja atrair um advogado com a força do pensamento.

Mãe é o único ser em que se pode acreditar quando diz que tudo vai ficar bem. Mãe é o motivo pelo qual a gente passa a crer que tudo é possível. Mãe é o que inspira magia no mundo.

segunda-feira, 29 de setembro de 2008

Fim de tarde de domingo


Fui obrigada a passar um longo tempo na rodoviária de Porto Alegre. Só sentar e observar as pessoas passando, apressadas, carregadas, atrasadas... Só isso já seria uma ótima distração. Mas, dentre os tantos lugares que havia para passar aquelas horas, escolhi um deles, pela simpatia com que o atendente acolhia as pessoas na entrada, cuidando de suas malas e de sua fome. Fazia com que todos se sentissem bem e tornava o ambiente mais amigável.


Mas houve um momento a partir do qual o clima do lugar murchou. O rapaz ficara sem graça, os clientes, mais sem graça ainda. O gerente da lanchonete resolvera chamar a atenção do mais simpático de seus funcionários ali, diante de todas as outras pessoas. E não foi um diálogo discreto. Ele elevou o tom de voz, bem no meio da lanchonete.


Aumentar a voz muda a finalidade do que se quer falar. Deixa-se de orientar e passa-se a humilhar. Deixa de ser educativo para se tornar uma péssima maneira de se mostrar melhor. Não é necessário alterar a voz para se fazer entender. Não são necessárias testemunhas para que o recado seja dado. Não precisa desmerecer o trabalho do outro para mostrar que o seu está sendo feito.


O tão bem disposto rapaz preferiu migrar para trás do balcão. Entristeceu. Não se ouvia mais sua alegre voz. Com certeza, preferiria ter ido para casa naquele final de tarde de domingo. Mas não foi. Ficou. Continuou fazendo seu trabalho. Não sorriu mais, não conversou. Apenas pensou. Os clientes silenciaram em seu nome. A comida fez questão de perder o sabor.


A parte boa é que o rapaz foi um bom conselheiro para ele mesmo. Seja lá o que ele tenha pensado, surtiu efeito. De repente, surge de trás do balcão o bom-humor e o bom atendimento. Um cardápio mais colorido e novo ânimo para se fazer pedidos. Ele voltou ao que era. Voltou para a porta, a atrair clientes. Voltou com todo o gás.


Suponho que ele tenha entendido que a sua presença ali era imensamente maior que as palavras disparadas contra quem mesmo as disse.

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

Letras espelhadas




Nunca havia experimentado a multifuncionalidade de um simples batom. Nem a de um espelho. Nunca havia usado o espelho como folha de papel, nem o batom como caneta. Mas chega o momento em que as funções dos objetos se confundem tanto quanto a vontade de deixar um recado. Eu queria deixar uma mensagem para ti, sem saber exatamente o que dizer. Era aquela ânsia presa na garganta e na ponta dos dedos que fazem com que alguma palavra saia, ou falada ou escrita.

Era noite. Não tarde da noite: cedo da manhã. Tu dormindo, eu me preparando para sair. Arrumando a mesa do teu café da manhã enquanto me vestia. Olhando para o teu sono tranqüilo enquanto organizava a bolsa. Dando um beijo de despedida lembrando de pegar a chave e o celular. E aquela vontade gritando em mim para que eu gritasse para ti, silenciosamente, que te amo.

E na distração de passar o batom diante do espelho, pensei em usar os três elementos a teu favor: o espelho, o batom e eu. Juntos para te dar o recado certo. Ao acordar, tu não terias meus lábios, mas a cor que os cobre. Não terias minha presença ao teu lado, mas minhas palavras. Sempre as palavras. Aquelas que aprisionam meu coração e me fazem partir vazia.

E passo o dia assim, ausente das letras que sou para ti. Falando outro idioma que não o do amor. Esperando para voltar e retomar a fala, a língua, o beijo. Sentindo o coração bater em outro lugar que não no meu peito.

Só depois de nossos primeiros balbucios, dos sussurros e do diálogo feito mais de olhares que de discursos, é que volto para a antiga página espelhada do meu recado. Lá, vejo a tua letra embaixo da minha. Outra cor de batom respondendo minha frase. O reflexo do meu rosto marcado com tua caligrafia.


O espelho virou meu bloco de notas preferido. Não quero mais canetas nem lápis, só batons. Quero minha imagem riscada. Um A no pescoço, M na face, O no cabelo. Nunca foi tão bom ver minha cara de sono refletida no começo da manhã. É o teu reflexo que vejo. A tua letra. Tua mão me desenhando. Tuas palavras, que ainda te mantêm aqui.

terça-feira, 23 de setembro de 2008

La cumparsita


Passo grande parte do tempo escutando música. Corro e escuto música, cozinho e escuto música, tomo banho e escuto música. Sempre tive vontade de que a vida tivesse trilha sonora. No momento mágico do primeiro beijo, puft: começa a tocar a música mais romântica que você conhece! Músicas alegres para o encontro entre amigos. A música mais deprê possível na hora em que a vontade é só chorar, mais nada.

Música tem poder sobre a gente. Especialmente o poder de suscitar lembranças. Você está muito bem, obrigada, até começar a tocar a música que marcou a época em que seu coração estava partido. Aí, relembra aquela fase, as sensações, o que você era. Até tocar aquela música que marcou sua infância, aquela que você cantava com toda a força, aos berros, e com a letra toda errada. Quando preciso escrever algo emocionante, por exemplo, e não estou no clima, minha solução é rápida: música aos meus ouvidos... Trilha da Amélie Poulain ou do Forrest Gump. São milagrosas!

Percebi que, em minha seleção de músicas, tenho alguns tangos entre uma canção e outra. Vai de Gardel a Gotan Project. Gosto da mistura de sons, da força de emoção das notas, da dança que desconheço. Inevitavelmente, lembro de minha avó. Era ela que escutava tangos. Foi dela que copiei esse gosto. Ela pedia: “Liga um tango pra eu ouvir!” e eu ligava o toca-discos, de onde iniciava a viagem de minha avó.

A partir do momento em que a música começava, ela não conversava mais. Dizia, no máximo, “Olha que lindo!”. Seu olhar perdia-se no horizonte da parede do quarto. Sua cabeça dançava de um lado a outro, no ritmo da música. Ela escutava o disco inteirinho. Um tango após o outro. O tempo em que a agulha percorria o LP era o tempo em que minha avó estava em qualquer outro lugar que sua memória a levasse.

Sempre fora uma mulher muito bonita. Ela mesma dizia isso. Sempre cuidou muito bem dos cabelos e das unhas. Foi ela quem me deu meu primeiro esmalte vermelho “porque essas cores fraquinhas não têm graça”. Essa era a cor que a caracterizava: vermelho. No batom, no esmalte, na vida. Sempre em estado de paixão. Mesmo depois de mais velha, só deixava que alguém a visse depois de maquiar-se: blush, lápis na sobrancelha, perfume forte, batom vermelho.

Cresci olhando-me no espelho de minha avó na esperança de me tornar tão bonita quanto ela. Usei seus perfumes, seus batons, seus sapatos, seus colares. Hoje, ouço seus tangos para senti-la ainda perto de mim. E quando toca “La cumparsita”, ela está. Ela está em cada nota que Gerardo Rodríguez compôs. Ela é “La cumparsita”. Eu a vejo. É quando entendo que, quando ela escutava os tangos, seu silêncio não era de quem apenas apreciava o som. Era de quem fazia passos de tango em seu coração. De quem gravava o tango no meu.

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Falando em saudade...


Taí algo que eu entendo: saudade. Se as pessoas fossem academicamente reconhecidas pelas suas saudades, eu ganharia, no mínimo, um título Honoris causa. Nesse exato momento da minha vida, percebi que estou longe de todos que amo. Todos. Mãe, pai, irmãos, sobrinhos, namorado, amigos. Todos longe. Ou melhor, eu é que estou longe deles.


Mas isso não é de agora. A saudade sempre me perseguiu. E por causa dela, acreditava estar sempre no lugar errado. Quando criança, queria morar na cidade dos meus avós porque sempre eram melhores os dias lá. Quando minha irmã mais velha foi embora para o Nordeste, queria ir atrás dela. Na adolescência, morava a seis horas de distância do meu então namorado. Queria estar na cidade dele, claro! Aliás, é onde meu pai mora agora. Mas agora... Bem, aí resolvi ser independente e dar uma mexida na vida. Mexi e acabei em Santa Catarina. Não... Nenhum parente por perto.


Visto assim, começo a achar que não era a saudade que me perseguia. Eu é que procurava a saudade. Não satisfeita, encontrei o homem da minha vida... 3.000 quilômetros distante de mim.


Assim, são anos e anos com essa companheira. Tantas vezes já chorei por ela, já briguei por sua causa, já a matei. E ela volta e se instala em mim. Modifica-se, mas nunca diminui. E a cada hora, uma saudade diferente me invade: das mãos da minha mãe, do olhar do meu namorado, da gargalhada de uma irmã, do abraço demorado da outra irmã, do dia-a-dia dos meus sobrinhos crescendo, do cheirinho bom do meu pai, de preparar café para o meu irmão, de ter a melhor amiga ao alcance do abraço...


Sempre a saudade. Sempre comigo.


Mas agora preciso ir. Tem um vôo chegando e uma saudade doida para ser aplacada...

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

Alemanha


Estive com uma amiga cujo namorado foi passar seis meses na Alemanha para estudar. Estavam no início da vida juntos, dividindo as primeiras contas, tendo as primeiras boas e más surpresas da vida a dois. E a Alemanha apareceu bem no meio disso tudo. Invadiu o romance. Desestruturou a ordem do casal. Trouxe lágrimas, medos, inseguranças, saudades.


O pior é a saudade. É minha amiga voltar para o apartamento deles e encontrá-lo vazio, exatamente do jeito como ela o deixou. É comprar comida para uma só pessoa. É ver o programa preferido dos dois e não tê-lo ao lado para os comentários. É ver a correspondência chegar no nome dele e não ter mais que o nome para responder. É dobrar as roupas e guardá-las ao lado das poucas roupas dele que ficaram. Deparar-se com o papel que ele rabiscou um dia... Provas de que não era um sonho. Era a vida deles que se transformou na vida dela.


O bom é que estamos na era da internet, da comunicação imediata, da webcam. O bom é que ele dribla o sono e o fuso horário para falar com ela. Conta do seu dia, das suas descobertas, das suas dificuldades. Trocam fotos e beijos pelo computador. Continuam juntos. Virtualmente.


Mas ainda existe o que tecnologia alguma consegue substituir. O cheiro. O toque. O dormir abraçadinho. O olhar olho no olho. O beijo. O sexo. O encontro no final do dia.


São seis meses sem que tirem uma única foto juntos. Sem fazer refeições juntos. Sem bilhetinhos embaixo do travesseiro. Sem o suor misturado dos corpos. Sem andar de mãos dadas. Sem dividir o mesmo copo.


Seis meses. Que passam. E depois dos quais não há certezas. O que há é a esperança. E a saudade.

terça-feira, 16 de setembro de 2008

Amar é f....


Como você reconhece um "eu te amo" verdadeiro? Você sabe só de olhar? Só de ouvir? Ou você acredita porque é mais conveniente do que duvidar? Dizem que não há espaço para dúvidas no amor. Não há espaço para hesitar. Não há espaço para erros. Então, se você hesitar, você não ama. Se duvidar, não ama. Se errar, também não ama.


Ora, que besteira! Claro que ama! Você ama, duvida e continua amando. Você ama, hesita e continua amando. Você ama, odeia e continua amando. Ama, erra e permanece amando. Porque amar não é ter certeza sempre. Amar não é estar 100% seguro. Também não é fazer tudo certo o tempo todo. Amar não é amar o tempo todo.


Você esquece, mas volta a amar. Você se afasta, mas volta amando. Pois a sua cabeça pode estar longe, mas o amor está ali. Você pode estar dormindo, que o amor ainda estará ali. Você vai envelhecer e o amor continuará ali. Você pode mudar de endereço, de trabalho, de nome... E o amor permanecerá ali.


E essa sina de se deparar constantemente com aquele amor, mesmo quando você acha que ele te esqueceu, quando você tem certeza de que não precisa mais dele, quando chega a pensar que está melhor sem ele...


É aí que você entende que amar não é uma escolha. Amar é fato.

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Capas


Nunca gostei de capas para sofá. Logo depois que minha mãe mandou para o estofamento o antigo jogo de sofás da sala - que voltou incrivelmente lindo - ela tratou de encomendar, sob medida, capas para os sofás. O estofamento novo era amarelinho, com toques de outras cores. A capa era vermelha, meio bordô, sem nada que desviasse daquela cor de esconderijo.


"É para não sujar o sofá", explicou minha mãe. E, para prevenir algo que inevitavelmente acontece na existência de qualquer móvel - o desgaste - nos sujeitamos a olhar todos os dias para aquele bordô sem graça. Não que eu não goste de bordô! Mas é que eu sabia a beleza que ele escondia. Ele escondia o original, o novo, o que estava louco para ser visto, usado, marcado.


Como me alegrava chegar em casa e perceber a leveza do ambiente sem o bordô... Era dia de lavar as capas. No dia seguinte, lá estava ele, cobrindo toda a eminente sala.


Capas de sofá escondem o que há de mais belo na casa. É como estar sempre de cortinas fechadas para a luz do dia. É como deixar os livros fechados em suas embalagens plásticas para que não amarelem. É o mesmo que dar um beijo sem abrir a boca. Que tomar banho sem estar completamente nu. Que falar com alguém ao telefone enquanto presta atenção ao programa de TV. Que entrar no mar sem molhar a cabeça.


Isso é não ser por inteiro. É se poupar da melhor parte. O objetivo é a entrega. É abrir mão de todas as capas. É deixar-se sujar com o uso. É não se proteger demais. Porque viver sob capas é perder o que realmente é bonito na vida.

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

O lugar (provisório) das coisas


Criei uma gaveta para as coisas que não sei onde guardar. Elas não têm lugar definido, não pertencem nem à cozinha, nem ao banheiro, nem ao quarto. São livres de lugares estabelecidos. Estão em um tipo de limbo. A gaveta não é para sempre. Preciso dela para guardar outras coisas. Mas, nesse momento, ela está ocupada em tomar conta do que não tem lugar. Carregadores de celular que não são mais usados, algodão, peças de cortina que foram dispensadas, pilhas, chaveiros, amostras grátis de produtos, estojo extra para escova de dentes, bilhetes antigos, cartões de visita de gente de quem não lembro...

Creio que todo mundo tem um lugarzinho assim. Uma gaveta, uma prateleira, uma mochila. Um canto onde se coloca tudo o que não se usa, mas que não se quer jogar fora. Pode ser que você precise disso um dia. Pode ser que isso simplesmente faça você lembrar de um momento bom de sua vida. A gente não se desfaz dos momentos bons da vida. Também não se desfaz do que ainda pode nos ser útil em algum momento.

Lembro, com isso, de uma tia fantástica que tenho. Ela é fã de jornais, dos artigos dos jornais, dos anúncios bonitos, de citações significativas. O problema é que ela não tem tempo de ler o jornal inteiro todos os dias. E os guarda. Pilhas e pilhas de jornais no limbo. Aguardando pela leitura, pela avaliação, pela decisão de serem recortados e guardados ou transformados em sucata. Ela não sabe se todos aqueles jornais têm conteúdo aproveitável, mas não consegue se desfazer da perspectiva de ser agradada por um deles. Seria como colocar no lixo a chance de um sorriso.

E assim a gente faz com roupas antigas, revistas velhas, brincos desparceirados, souvenirs de viagens, cartas de quem não mantém mais contato. A gente guarda porque acredita ter controle sobre as coisas materiais. A gente guarda para lembrar do que já teve e do que já viveu.

A embalagem de um bombom que ganhou do amor. O livrinho preferido da infância. A entrada do cinema. O comprovante de depósito de dois anos atrás. A flor seca e perdida no meio de um livro. A foto em que mal se reconhece. A caneta que não funciona.

A gente guarda enquanto ainda precisa lembrar. Até o dia em que não vê mais sentido em guardar. Ou quando percebe que não tem mais lugar para aquilo em nossa vida. Aí a gente se desprende. Se desfaz do que nunca realmente foi nosso. E abre espaço para que novos apegos tomem lugar em nossas gavetas.