segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Um mundo redondo

Agora eu entendi por que o mundo é redondo.
Era óbvio... É porque o mundo está sempre grávido!
Grávido de pessoas, de ideias, de novos dias e novas esperanças.
O mundo é sempre fecundo. Assim como as pessoas.
Porque todo mundo pode renascer, pode se reinventar, reaprender.
Ainda que demore nove meses. Ou mais.
A vida tem pressa de surgir em nossos dias, mas ela aguarda a gestação, o preparo, a espera. Ela se forma em nós e sabe quando deve nos invadir, quando não há mais maturação necessária, quando o mundo entra em trabalho de parto por nós.
Não é cesariana. É natural.
E não dói.
Apenas renova.
E nem exige tantos cuidados.
A vida, quando nasce em nós, já vem pronta para sair da maternidade e engravidar o mundo de novo.



(Texto escrito para C., completamente grávida de felicidade!)

terça-feira, 24 de novembro de 2009

Presente I

Ela conta a história de uma freira que a atormentava no internato, em seu tempo de menina; de um homem que a fez viver longamente entre o desespero e o tédio, a revolta e a humilhação. E fica meio magoada porque a tudo eu sorrio, porque eu não pareço participar do sentimento com que ela fala contra essa gente que passou. Afinal ela também sorri: "Você é meu amigo ou amigo da onça?"

Sou seu amigo. Mas rico ri à toa, e eu me sinto vertiginosamente rico porque essas histórias, alegres ou tristes, ela me conta de mãos dadas, junto de mim. Digo-lhe isso; mas não lhe confesso que aprovo e abençôo todas as coisas e pessoas que povoaram seu passado, e tenho vontade de dizer:

"Benditos teu pai e tua mãe; benditos os que te amaram e os que te maltrataram; bendito o artista que te adorou e te possuiu, e o pintor que te pintou nua, e o bêbedo de rua que te assustou, e o mendigo que disse uma palavra obscena; bendita a amiga que te salvou e bendita a amiga que te traiu; e o amigo de teu pai que te fitava com concupiscência quando ainda eras menina; e a corrente do mar que te ia arrastando; e o cão que uivava a noite inteira e não te deixou dormir; e o pássaro que amanheceu cantando em tua janela, e a insensata atriz inglesa que de repente te beijou na boca; e o desconhecido que passou em um trem e te acenou adeus; e teu medo e teu remorso a primeira vez que traíste alguém; e a volúpia com que o fizeste; e a firme determinação, e o cinismo tranqüilo, e o tédio; e a mulher anônima que te vociferou insultos pelo telefone; e a conquista de ti por ti mesma, para ti mesma; e os intrigantes do bairro que tentam te envolver em suas teias escuras; e a porta que se abriu de repente sobre o mar; e a velhinha de preto que ao te ver passar disse: "moça linda..."; bendita a chuva que tombou de súbito em teu caminho, e bendito o raio que fez saltar teu cavalo, e o mormaço que te fez inquieta e aborrecida, e a lua que te surpreendeu nos braços de um homem escuro entre as grandes árvores azuis. Bendito seja todo o teu passado, porque ele te fez como tu és e te trouxe até mim. Bendita sejas tu."


(Rubem Braga, Abril de 1964)



Resolvi presentear meus queridos leitores com textos de que gosto muito, de diferentes autores. Esse é o primeiro, intitulado "A mulher e seu passado", retirado do livro "200 crônicas escolhidas", um dos que tem lugar cativo em minha cabeceira. Espero que gostem... e se inspirem!

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Pensando no Natal

De tudo, nessa época de Natal, há um detalhe do qual sempre gostei mais, desde criança. Não negava os presentes (esperava ansiosa por eles!). Cheguei a escrever cartas ao Papai-Noel. A Ceia era sempre cheia de guloseimas maravilhosas! Roupas novas eram compradas para celebrar a data. Montávamos a árvore de Natal e a casa ficava toda ricamente enfeitada com motivos natalinos. E era no meio disso tudo que estava o meu objeto de admiração, de encantamento: o presépio.

Acontece que o presépio consegue reunir itens que, indiscutivelmente, fazem bem, suscitam bons sentimentos. Percebam: todos ali estão com as atenções voltadas para um bebê recém nascido. Antes de ser Menino Jesus e significar tudo o que significa, era apenas uma criança. É a representação de uma família que se inicia. E é um início sem preconceitos, sem exigências. Há até alguns animais por perto... há o isolamento do local... há um céu estrelado iluminando a cena.

E depois chegam as visitas com seus presentes. E tem o anjo! Ah... o anjo! Quando criança, sempre entendi que aquele era o anjinho da guarda de Jesus, que, como qualquer criança, ganhava um de Deus quando nascia.

Então, era isso: uma nova família, simplicidade, natureza e amigos que vêm de longe para ver o bebê.



Ninguém estava se preocupando com luxo naquele momento. Não tinha uma plaquinha do lado de fora da suposta gruta com o nome “Jesus”, anunciando o nascimento. Maria nem teve tempo de se preparar... Deve ter sentido as dores do parto em cima do burrinho que a carregava.

É uma visão romântica de toda essa referência cristã? Pode ser! Mas, olhando para aquela cena do presépio, tudo fica claro... O que havia ali era apenas a sensação que tanto nos falta: a sensação de paz e de que tudo vai dar certo.

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

De repente... 30??



Um dia a gente acorda com 30 anos. Para alguns, não faz a menor diferença. Para mim, fez. Eu não imaginava que faria, mas fez. E não foi exatamente no dia do meu aniversário. Aconteceu uns dois dias antes. Já estava me sentindo com trinta anos antes mesmo de completá-los.

Meu problema não era estar com 30 anos. Meu problema foi me dar conta de tudo o que eu havia planejado, lá pelos 15 ou 20 anos, para quando eu chegasse aos 30. A (ilusória) ideia que eu tinha era a de que uma mulher com 30 anos já está totalmente bem resolvida em todos os sentidos: pessoal e profissionalmente. Vida estabilizada. A probabilidade era estar casada, talvez até com um primeiro filho. Além disso, reconhecimento profissional, claro! Tudo perfeitinho! Vida definida... Era só aproveitar o resto dos anos.

Mas os 30 chegaram rápido demais! Não deu tempo de ajeitar tudo. Ou deu, mas aí eu mudei de ideia. Aí eu resolvi me mudar. Aí eu decidi não casar, tampouco ter filhos. Aí gostei desse negócio de estudar e continuei estudando, estudando...

Não sou a mulher de 30 anos que eu havia imaginado que seria. Com 15 anos, tive tudo o que uma adolescente como eu queria, com direito a baile de debutantes (!) e sonhos para o resto da vida... Sonhos que a mulher que me tornei resolveu mudar. Tudo que eu achei que já estaria acabado a essa altura da vida está recém começando.

Ou seja, precisei fazer 30 anos para entender que não adianta nada ficar planejando detalhadamente o que vai acontecer na minha vida em 10, 15 anos. Confio muito mais no que eu decidir quando chegar lá.

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Cheirinho de amor



Quando ela o conhecera, a vida ainda não tinha perfume. Havia o calor das pessoas, havia a beleza das flores, havia o sabor dos alimentos, mas nada disso tinha aroma peculiar a ela. Olfato mesmo ela só se deu conta de que tinha quando sentiu o perfume dele. Seu hálito, sua pele, seu beijo... tudo cheirava bem.

Era cheirinho de amor.

Levada por ele, deu-lhe a mão esquerda. E mais. Tornara-se a mulher do homem mais perfumado que ela já conhecera. Perceba: não era perfume comprado, preparado, de boticários. Não havia igual. Era pura e simplesmente o perfume dele, daquele homem a quem ela se entregava todas as noites, durante todos os aromáticos anos de matrimônio.

Disso, outros cheiros vieram. Cheiros de Natal, de praia, de banhos de chuva, de bebê menina e bebê menino, de fraldas e mamadeiras. Cheiro de roupa limpa e roupa suja – “que se lava em casa”. Cheiro de lágrimas, de risos, de aniversários, de jantares, de amigos, de passeios, de presentes. Mas era com o cheiro daquele homem que ela sempre pegava no sono.

Até o dia em que, àquele cheiro tão familiar, misturou-se outro, estranho, doce demais. Era, sem dúvidas, o perfume de uma mulher que não era ela. Perfume que invadiu sua cama, sua paz, sua vida. Não cabia desvendar quem seria a dona do ofensivo aroma. Não havia espaço para tal perfume naquela casa.

Ele se foi. Perdeu-se nos caminhos que nunca mais o levaram de volta. Conheceu outros cheiros, outros gostos, outros corpos. Continuou com a sensação de quem viaja, embora soubesse que já não tinha mais um lar para o qual retornar.

Ela se manteve no papel da mulher que construíra ao longo dos anos. Ser mãe quase lhe bastava. Quase. Chegava a noite e ela sabia que sentiria falta daquele cheiro... Adormecia com o medo de voltar à fase de não reconhecer os aromas, de perder o olfato para o desgosto que ele lhe causara.

Então, em um amanhecer, ela despertou com aquele perfume. Não havia possibilidade de engano. Conhecia o cheiro. Era ele. Num sobressalto, procurou o aroma pelo quarto, pela sala, pela cozinha, pela casa toda. Nem sinal dele.

Houve outros momentos em que ela voltava a sentir o mesmo conhecido perfume. Parecia lhe perseguir. “Deve ser memória olfativa”, pensava. Procurava não pensar muito no assunto, mas continuava dormindo sempre no conforto daquele cheiro. Cheiro que lhe cercava, cheiro que lhe despertava, cheiro que lhe fazia bem...

Foi então que percebera.
O cheiro nunca fora dele.
O cheiro era dela. Emanava dela. Perfume natural que ela tinha.

Era sim o cheirinho de amor... Amor – agora entendia! – que sempre fora maior por ela própria.