terça-feira, 30 de setembro de 2008

Com mãe não se discute


Passou uns dias com a mãe. Mesmo as mães precisam passar alguns dias com suas próprias mães. Agora se entendem muito melhor. Falam a mesma língua: a língua da maternidade. Sabem receitar remédios como o melhor dos médicos, sabem curar uma dor com um beijo, sabem repreender com um olhar. Sabem, sem nunca terem dito nada, que existe algo maior na vida que ter sucesso, ter dinheiro, ter marido, ter o melhor corpo. Existe o filho. A vida que só elas poderiam ter colocado no mundo.

Fez as malas, organizou as roupas, as fraldas, os brinquedos de borracha. Pegou a maquiagem, a chupeta e a pasta do trabalho. Mala, bolsa de viagem, bolsa de bebê. Agasalhou bem a criança, despediu-se da casa que abriga seu passado. Levava seu futuro nos braços.

Filas, esperas, embarque. Apresentou todos os documentos. Carteira de identidade, cópia da certidão de nascimento da filha, passagem das duas. Seu embarque foi barrado. Não aceitam cópias. Só documentos originais. Àquela hora da noite, todas as outras pessoas embarcando e ela ali, com a filha agarrando sua perna. Não aceitam cópias... Como se mãe fosse coisa que se copiasse.

Ela insistiu, ela implorou, ela tremia. Não cederam. Ela tocava no braço do responsável, apelou para a sensibilidade, telefonou para quem não pôde ajudá-la. Nada adiantou. A criança começou a chorar. Pedia colo. Ela pegava a filha, alisava seus cabelos, olhava em seus olhos e dizia: “Vai ficar tudo bem”. Continuava argumentando. “É minha filha, moço”.

Com a menina no colo, balançava a cabeça, desolada, e falava “Alguém precisa me ajudar”. Só as palavras de uma mãe para surtirem efeito com tamanha eficiência. A partir dali, quem continuou a conversa foi um advogado que passava e se solidarizou com aquela jovem mãe, que tinha a cópia da certidão e a original da angústia materna.

Ele conversou, explicou, deu seu nome em garantia. Assinou um termo de responsabilidade. Responsabilidade por acreditar no que aquela mulher dizia. De acreditar que a menina não se entregaria daquela forma aos braços de mais ninguém, exceto os da mãe. Essa era a prova de que precisava.

Foi a última a embarcar. Andava por entre os outros passageiros, abraçada na filha, e dizendo baixinho: “Está tudo bem agora”. Ela teve medo. Ela achou que não conseguiria. Ela sentiu o que qualquer pessoa sentiria. A diferença é que ela estava no papel de mãe. E mãe não desiste. Mãe dá um jeito. Mesmo que seja atrair um advogado com a força do pensamento.

Mãe é o único ser em que se pode acreditar quando diz que tudo vai ficar bem. Mãe é o motivo pelo qual a gente passa a crer que tudo é possível. Mãe é o que inspira magia no mundo.

segunda-feira, 29 de setembro de 2008

Fim de tarde de domingo


Fui obrigada a passar um longo tempo na rodoviária de Porto Alegre. Só sentar e observar as pessoas passando, apressadas, carregadas, atrasadas... Só isso já seria uma ótima distração. Mas, dentre os tantos lugares que havia para passar aquelas horas, escolhi um deles, pela simpatia com que o atendente acolhia as pessoas na entrada, cuidando de suas malas e de sua fome. Fazia com que todos se sentissem bem e tornava o ambiente mais amigável.


Mas houve um momento a partir do qual o clima do lugar murchou. O rapaz ficara sem graça, os clientes, mais sem graça ainda. O gerente da lanchonete resolvera chamar a atenção do mais simpático de seus funcionários ali, diante de todas as outras pessoas. E não foi um diálogo discreto. Ele elevou o tom de voz, bem no meio da lanchonete.


Aumentar a voz muda a finalidade do que se quer falar. Deixa-se de orientar e passa-se a humilhar. Deixa de ser educativo para se tornar uma péssima maneira de se mostrar melhor. Não é necessário alterar a voz para se fazer entender. Não são necessárias testemunhas para que o recado seja dado. Não precisa desmerecer o trabalho do outro para mostrar que o seu está sendo feito.


O tão bem disposto rapaz preferiu migrar para trás do balcão. Entristeceu. Não se ouvia mais sua alegre voz. Com certeza, preferiria ter ido para casa naquele final de tarde de domingo. Mas não foi. Ficou. Continuou fazendo seu trabalho. Não sorriu mais, não conversou. Apenas pensou. Os clientes silenciaram em seu nome. A comida fez questão de perder o sabor.


A parte boa é que o rapaz foi um bom conselheiro para ele mesmo. Seja lá o que ele tenha pensado, surtiu efeito. De repente, surge de trás do balcão o bom-humor e o bom atendimento. Um cardápio mais colorido e novo ânimo para se fazer pedidos. Ele voltou ao que era. Voltou para a porta, a atrair clientes. Voltou com todo o gás.


Suponho que ele tenha entendido que a sua presença ali era imensamente maior que as palavras disparadas contra quem mesmo as disse.

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

Letras espelhadas




Nunca havia experimentado a multifuncionalidade de um simples batom. Nem a de um espelho. Nunca havia usado o espelho como folha de papel, nem o batom como caneta. Mas chega o momento em que as funções dos objetos se confundem tanto quanto a vontade de deixar um recado. Eu queria deixar uma mensagem para ti, sem saber exatamente o que dizer. Era aquela ânsia presa na garganta e na ponta dos dedos que fazem com que alguma palavra saia, ou falada ou escrita.

Era noite. Não tarde da noite: cedo da manhã. Tu dormindo, eu me preparando para sair. Arrumando a mesa do teu café da manhã enquanto me vestia. Olhando para o teu sono tranqüilo enquanto organizava a bolsa. Dando um beijo de despedida lembrando de pegar a chave e o celular. E aquela vontade gritando em mim para que eu gritasse para ti, silenciosamente, que te amo.

E na distração de passar o batom diante do espelho, pensei em usar os três elementos a teu favor: o espelho, o batom e eu. Juntos para te dar o recado certo. Ao acordar, tu não terias meus lábios, mas a cor que os cobre. Não terias minha presença ao teu lado, mas minhas palavras. Sempre as palavras. Aquelas que aprisionam meu coração e me fazem partir vazia.

E passo o dia assim, ausente das letras que sou para ti. Falando outro idioma que não o do amor. Esperando para voltar e retomar a fala, a língua, o beijo. Sentindo o coração bater em outro lugar que não no meu peito.

Só depois de nossos primeiros balbucios, dos sussurros e do diálogo feito mais de olhares que de discursos, é que volto para a antiga página espelhada do meu recado. Lá, vejo a tua letra embaixo da minha. Outra cor de batom respondendo minha frase. O reflexo do meu rosto marcado com tua caligrafia.


O espelho virou meu bloco de notas preferido. Não quero mais canetas nem lápis, só batons. Quero minha imagem riscada. Um A no pescoço, M na face, O no cabelo. Nunca foi tão bom ver minha cara de sono refletida no começo da manhã. É o teu reflexo que vejo. A tua letra. Tua mão me desenhando. Tuas palavras, que ainda te mantêm aqui.

terça-feira, 23 de setembro de 2008

La cumparsita


Passo grande parte do tempo escutando música. Corro e escuto música, cozinho e escuto música, tomo banho e escuto música. Sempre tive vontade de que a vida tivesse trilha sonora. No momento mágico do primeiro beijo, puft: começa a tocar a música mais romântica que você conhece! Músicas alegres para o encontro entre amigos. A música mais deprê possível na hora em que a vontade é só chorar, mais nada.

Música tem poder sobre a gente. Especialmente o poder de suscitar lembranças. Você está muito bem, obrigada, até começar a tocar a música que marcou a época em que seu coração estava partido. Aí, relembra aquela fase, as sensações, o que você era. Até tocar aquela música que marcou sua infância, aquela que você cantava com toda a força, aos berros, e com a letra toda errada. Quando preciso escrever algo emocionante, por exemplo, e não estou no clima, minha solução é rápida: música aos meus ouvidos... Trilha da Amélie Poulain ou do Forrest Gump. São milagrosas!

Percebi que, em minha seleção de músicas, tenho alguns tangos entre uma canção e outra. Vai de Gardel a Gotan Project. Gosto da mistura de sons, da força de emoção das notas, da dança que desconheço. Inevitavelmente, lembro de minha avó. Era ela que escutava tangos. Foi dela que copiei esse gosto. Ela pedia: “Liga um tango pra eu ouvir!” e eu ligava o toca-discos, de onde iniciava a viagem de minha avó.

A partir do momento em que a música começava, ela não conversava mais. Dizia, no máximo, “Olha que lindo!”. Seu olhar perdia-se no horizonte da parede do quarto. Sua cabeça dançava de um lado a outro, no ritmo da música. Ela escutava o disco inteirinho. Um tango após o outro. O tempo em que a agulha percorria o LP era o tempo em que minha avó estava em qualquer outro lugar que sua memória a levasse.

Sempre fora uma mulher muito bonita. Ela mesma dizia isso. Sempre cuidou muito bem dos cabelos e das unhas. Foi ela quem me deu meu primeiro esmalte vermelho “porque essas cores fraquinhas não têm graça”. Essa era a cor que a caracterizava: vermelho. No batom, no esmalte, na vida. Sempre em estado de paixão. Mesmo depois de mais velha, só deixava que alguém a visse depois de maquiar-se: blush, lápis na sobrancelha, perfume forte, batom vermelho.

Cresci olhando-me no espelho de minha avó na esperança de me tornar tão bonita quanto ela. Usei seus perfumes, seus batons, seus sapatos, seus colares. Hoje, ouço seus tangos para senti-la ainda perto de mim. E quando toca “La cumparsita”, ela está. Ela está em cada nota que Gerardo Rodríguez compôs. Ela é “La cumparsita”. Eu a vejo. É quando entendo que, quando ela escutava os tangos, seu silêncio não era de quem apenas apreciava o som. Era de quem fazia passos de tango em seu coração. De quem gravava o tango no meu.

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Falando em saudade...


Taí algo que eu entendo: saudade. Se as pessoas fossem academicamente reconhecidas pelas suas saudades, eu ganharia, no mínimo, um título Honoris causa. Nesse exato momento da minha vida, percebi que estou longe de todos que amo. Todos. Mãe, pai, irmãos, sobrinhos, namorado, amigos. Todos longe. Ou melhor, eu é que estou longe deles.


Mas isso não é de agora. A saudade sempre me perseguiu. E por causa dela, acreditava estar sempre no lugar errado. Quando criança, queria morar na cidade dos meus avós porque sempre eram melhores os dias lá. Quando minha irmã mais velha foi embora para o Nordeste, queria ir atrás dela. Na adolescência, morava a seis horas de distância do meu então namorado. Queria estar na cidade dele, claro! Aliás, é onde meu pai mora agora. Mas agora... Bem, aí resolvi ser independente e dar uma mexida na vida. Mexi e acabei em Santa Catarina. Não... Nenhum parente por perto.


Visto assim, começo a achar que não era a saudade que me perseguia. Eu é que procurava a saudade. Não satisfeita, encontrei o homem da minha vida... 3.000 quilômetros distante de mim.


Assim, são anos e anos com essa companheira. Tantas vezes já chorei por ela, já briguei por sua causa, já a matei. E ela volta e se instala em mim. Modifica-se, mas nunca diminui. E a cada hora, uma saudade diferente me invade: das mãos da minha mãe, do olhar do meu namorado, da gargalhada de uma irmã, do abraço demorado da outra irmã, do dia-a-dia dos meus sobrinhos crescendo, do cheirinho bom do meu pai, de preparar café para o meu irmão, de ter a melhor amiga ao alcance do abraço...


Sempre a saudade. Sempre comigo.


Mas agora preciso ir. Tem um vôo chegando e uma saudade doida para ser aplacada...

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

Alemanha


Estive com uma amiga cujo namorado foi passar seis meses na Alemanha para estudar. Estavam no início da vida juntos, dividindo as primeiras contas, tendo as primeiras boas e más surpresas da vida a dois. E a Alemanha apareceu bem no meio disso tudo. Invadiu o romance. Desestruturou a ordem do casal. Trouxe lágrimas, medos, inseguranças, saudades.


O pior é a saudade. É minha amiga voltar para o apartamento deles e encontrá-lo vazio, exatamente do jeito como ela o deixou. É comprar comida para uma só pessoa. É ver o programa preferido dos dois e não tê-lo ao lado para os comentários. É ver a correspondência chegar no nome dele e não ter mais que o nome para responder. É dobrar as roupas e guardá-las ao lado das poucas roupas dele que ficaram. Deparar-se com o papel que ele rabiscou um dia... Provas de que não era um sonho. Era a vida deles que se transformou na vida dela.


O bom é que estamos na era da internet, da comunicação imediata, da webcam. O bom é que ele dribla o sono e o fuso horário para falar com ela. Conta do seu dia, das suas descobertas, das suas dificuldades. Trocam fotos e beijos pelo computador. Continuam juntos. Virtualmente.


Mas ainda existe o que tecnologia alguma consegue substituir. O cheiro. O toque. O dormir abraçadinho. O olhar olho no olho. O beijo. O sexo. O encontro no final do dia.


São seis meses sem que tirem uma única foto juntos. Sem fazer refeições juntos. Sem bilhetinhos embaixo do travesseiro. Sem o suor misturado dos corpos. Sem andar de mãos dadas. Sem dividir o mesmo copo.


Seis meses. Que passam. E depois dos quais não há certezas. O que há é a esperança. E a saudade.

terça-feira, 16 de setembro de 2008

Amar é f....


Como você reconhece um "eu te amo" verdadeiro? Você sabe só de olhar? Só de ouvir? Ou você acredita porque é mais conveniente do que duvidar? Dizem que não há espaço para dúvidas no amor. Não há espaço para hesitar. Não há espaço para erros. Então, se você hesitar, você não ama. Se duvidar, não ama. Se errar, também não ama.


Ora, que besteira! Claro que ama! Você ama, duvida e continua amando. Você ama, hesita e continua amando. Você ama, odeia e continua amando. Ama, erra e permanece amando. Porque amar não é ter certeza sempre. Amar não é estar 100% seguro. Também não é fazer tudo certo o tempo todo. Amar não é amar o tempo todo.


Você esquece, mas volta a amar. Você se afasta, mas volta amando. Pois a sua cabeça pode estar longe, mas o amor está ali. Você pode estar dormindo, que o amor ainda estará ali. Você vai envelhecer e o amor continuará ali. Você pode mudar de endereço, de trabalho, de nome... E o amor permanecerá ali.


E essa sina de se deparar constantemente com aquele amor, mesmo quando você acha que ele te esqueceu, quando você tem certeza de que não precisa mais dele, quando chega a pensar que está melhor sem ele...


É aí que você entende que amar não é uma escolha. Amar é fato.

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Capas


Nunca gostei de capas para sofá. Logo depois que minha mãe mandou para o estofamento o antigo jogo de sofás da sala - que voltou incrivelmente lindo - ela tratou de encomendar, sob medida, capas para os sofás. O estofamento novo era amarelinho, com toques de outras cores. A capa era vermelha, meio bordô, sem nada que desviasse daquela cor de esconderijo.


"É para não sujar o sofá", explicou minha mãe. E, para prevenir algo que inevitavelmente acontece na existência de qualquer móvel - o desgaste - nos sujeitamos a olhar todos os dias para aquele bordô sem graça. Não que eu não goste de bordô! Mas é que eu sabia a beleza que ele escondia. Ele escondia o original, o novo, o que estava louco para ser visto, usado, marcado.


Como me alegrava chegar em casa e perceber a leveza do ambiente sem o bordô... Era dia de lavar as capas. No dia seguinte, lá estava ele, cobrindo toda a eminente sala.


Capas de sofá escondem o que há de mais belo na casa. É como estar sempre de cortinas fechadas para a luz do dia. É como deixar os livros fechados em suas embalagens plásticas para que não amarelem. É o mesmo que dar um beijo sem abrir a boca. Que tomar banho sem estar completamente nu. Que falar com alguém ao telefone enquanto presta atenção ao programa de TV. Que entrar no mar sem molhar a cabeça.


Isso é não ser por inteiro. É se poupar da melhor parte. O objetivo é a entrega. É abrir mão de todas as capas. É deixar-se sujar com o uso. É não se proteger demais. Porque viver sob capas é perder o que realmente é bonito na vida.

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

O lugar (provisório) das coisas


Criei uma gaveta para as coisas que não sei onde guardar. Elas não têm lugar definido, não pertencem nem à cozinha, nem ao banheiro, nem ao quarto. São livres de lugares estabelecidos. Estão em um tipo de limbo. A gaveta não é para sempre. Preciso dela para guardar outras coisas. Mas, nesse momento, ela está ocupada em tomar conta do que não tem lugar. Carregadores de celular que não são mais usados, algodão, peças de cortina que foram dispensadas, pilhas, chaveiros, amostras grátis de produtos, estojo extra para escova de dentes, bilhetes antigos, cartões de visita de gente de quem não lembro...

Creio que todo mundo tem um lugarzinho assim. Uma gaveta, uma prateleira, uma mochila. Um canto onde se coloca tudo o que não se usa, mas que não se quer jogar fora. Pode ser que você precise disso um dia. Pode ser que isso simplesmente faça você lembrar de um momento bom de sua vida. A gente não se desfaz dos momentos bons da vida. Também não se desfaz do que ainda pode nos ser útil em algum momento.

Lembro, com isso, de uma tia fantástica que tenho. Ela é fã de jornais, dos artigos dos jornais, dos anúncios bonitos, de citações significativas. O problema é que ela não tem tempo de ler o jornal inteiro todos os dias. E os guarda. Pilhas e pilhas de jornais no limbo. Aguardando pela leitura, pela avaliação, pela decisão de serem recortados e guardados ou transformados em sucata. Ela não sabe se todos aqueles jornais têm conteúdo aproveitável, mas não consegue se desfazer da perspectiva de ser agradada por um deles. Seria como colocar no lixo a chance de um sorriso.

E assim a gente faz com roupas antigas, revistas velhas, brincos desparceirados, souvenirs de viagens, cartas de quem não mantém mais contato. A gente guarda porque acredita ter controle sobre as coisas materiais. A gente guarda para lembrar do que já teve e do que já viveu.

A embalagem de um bombom que ganhou do amor. O livrinho preferido da infância. A entrada do cinema. O comprovante de depósito de dois anos atrás. A flor seca e perdida no meio de um livro. A foto em que mal se reconhece. A caneta que não funciona.

A gente guarda enquanto ainda precisa lembrar. Até o dia em que não vê mais sentido em guardar. Ou quando percebe que não tem mais lugar para aquilo em nossa vida. Aí a gente se desprende. Se desfaz do que nunca realmente foi nosso. E abre espaço para que novos apegos tomem lugar em nossas gavetas.

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

Amor explícito




Repare no modo como as pessoas olham os casais apaixonados que encontram pela rua. Mas não aqueles apaixonados que apenas andam de mãos dadas. Os mais apaixonados. Os que não contêm as expressões de amor que teimam em escapar de suas bocas, suas mãos, seus braços e olhos. Eles se demoram em longos abraços, no meio da calçada, esquecidos de que existe qualquer outra coisa fora do espaço entre os dois. Beijam-se fervorosamente em praça pública porque tudo o que precisa ser dito está no toque das línguas.

Mas o curioso é o olhar de quem passa pelos apaixonados. Todos olham. Mas não com olhos de quem se enamora pela vida só de olhar. São olhos que estranham a paixão. Às vezes condenam. Quando não repudiam. Olhos de quem não está preparado para um amor tão desinibido. De quem acredita em beijos atrás das portas. Em amor com luz apagada. Na ausência de testemunhas da paixão.

Dizem que existe lugar e hora para demonstrar afetos tão calorosos. Que outras pessoas não precisam presenciar a paixão do casal. Mas acho estranho, pois são condenados beijos de rua mais inocentes do que os beijos que passam na novela. Abraços que tornam os caminhos mais agradáveis, mais românticos, e menos estressantes. Coisa boa virar a esquina e se deparar com uma troca de olhares inebriada de amor. Talvez, na próxima quadra, os olhos hipnotizados sejam os seus.

Inevitável passar por esses casaizinhos, que normalmente são adolescentes, e não pensar na paixão que existe em sua vida. Ou na falta dela. Pensar que era você que gostaria de estar ganhando aquele afago, ao invés de estar correndo para o banco, para o supermercado, para o trabalho. Pensar que está louco para voltar pra casa e encontrar a pessoa que te faz esquecer seus pudores de transeunte.

Pensar que não existe hora nem lugar para dar uma fugidinha até sua adolescência e ser, por alguns minutos, a atração dos olhares que passam.

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

Con(quem)viver


Morei sete meses com uma pessoa. Decidimos tomar rumos diferentes recentemente. Não houve brigas nem problemas de relacionamento. Foram importantes decisões de vida que nos separaram. Eu nunca havia morado com ninguém que não fosse da minha família. Foi uma experiência nova. Para o outro lado, não era tão nova assim, já tinha morado com outras pessoas antes. De qualquer forma, foi um período de crescimento para ambas as partes.

A pessoa com quem morei não tinha nenhum significado romântico em minha vida. Era uma amiga. Antes de ser amiga, havia sido minha cunhada por um longo período. Antes de ser minha cunhada, era a melhor amiga de minha irmã. Conclusão: nossas vidas se cruzaram desde sempre. Mas esses encontros de minha vida com a amiga da irmã ou com a cunhada não se compararam ao período em que dividimos o mesmo apartamento.

Parte dos móveis me pertence e outra parte te pertence. Anota aí quais são nossas contas fixas e em que dia do mês faremos os pagamentos. Preferes empregada doméstica ou vamos nós mesmas colocar a mão na massa? Comi um iogurte ontem à noite... Era meu ou teu? Questões práticas que permearam nossos dias e nos ajudaram a aprender um pouco mais sobre convivência.

Convivência não é apenas dividir as contas, é também pensar junto em como reduzir gastos ou qual a próxima aquisição a ser feita. Convivência não é cada um no seu quarto, é escolher um único programa de TV para ver junto e comentar sobre ele. Conviver não é pensar unicamente no próprio cansaço e nos próprios afazeres, é também olhar com calma para o outro e perceber quando se pode ser um bom ouvinte, um bom conselheiro. Convivência é lavar a louça do outro, mesmo que não seja sua obrigação.

Convivência é passar um final de semana com a cachorrinha da outra pessoa quando ela viaja. E divertir-se com isso. É anotar recados e entregá-los. É preparar uma refeição em conjunto. É lavar as suas roupas junto com as roupas que não são suas porque não custa nada fazer isso. É trocar livros e dicas de leituras. É perceber que existe gente que gosta de filme alemão. E respeitar esse gosto. É ficar conversando até tarde da noite, mesmo quando o trabalho no outro dia começa cedinho. É deixar um bilhete avisando para onde foi. É dar uma carona porque estão indo para o mesmo destino. É misturar as xícaras no mesmo armário. É emprestar um sapato, um par de brincos e o ombro amigo. Conviver também é construir o seu espaço e respeitar o espaço do outro.

É partir para uma nova fase e levar a outra pessoa junto. Dentro do seu coração.

terça-feira, 2 de setembro de 2008

Em alto e bom tom


Minha irmã e meu cunhado, pessoas muito devotas a Deus, ensinaram-me que não basta acreditar Nele, é preciso oralizar a sua fé, confessá-la em voz alta. Eu achava que bastava mentalizar, pensar, ter a boa intenção. Aprendi que esses atos silenciosos não são suficientes. É preciso falar.


Acabei aprendendo também que é preciso oralizar outras intenções que normalmente deixamos apenas no "mundo das idéias". Falando e ouvindo o que se está dizendo, fica mais evidente o que se passa dentro da gente.


Não basta, por exemplo, olhar para alguém pensando em todo o amor que você sente pela pessoa, no quanto você a admira e aprecia estar em sua companhia. É preciso falar. Diga "Eu te amo", "Gosto de estar com você" e veja seu sentimento um pouco mais sólido.


Não é suficiente você ser grato a uma pessoa e pensar que, quando ela precisar de você, você estará ali. Ela provavelmente não saiba disso. E mais provavelmente ainda: ela gostaria de saber. Quão difícil é dizer "Muito obrigado"? Ou "Pode contar comigo também"?


Não basta você se preocupar de todo o coração com alguém. Mesmo que seja um filho, que você presume que saiba o quanto você se preocupa. Pode ser qualquer um, do mais próximo ao mais distante. É preciso dizer "Eu me preocupo com você", "Eu torço por você", "Eu quero que você seja feliz". Se você não disser, a pessoa pode até desconfiar de suas intenções, mas nunca terá certeza.


Não é suficiente você se sentir arrependido por um ato. Não é suficiente que você se corrija ou até que se condene. Você precisa deixar claro: "Sinto muito, eu errei com você", "Desculpa".


Poucas palavras. Grandes palavras. Que precisam ser ditas, muito mais que sentidas. Elas podem findar um desconforto. Podem dar início a uma relação melhor. Podem transformar o dia. Podem dar paz a um coração. E pode ser que seja o seu coração.

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

Volte sempre!


Cada vez que volto à casa da minha mãe, faço uma visita para mim mesma. Visito o que eu era e o que vivi até mudar daquela cidade, daquela casa, daquela vida, na qual também fui feliz. Visito a Bianca de não muitos anos atrás, tento conhecê-la, saber de que modo ela se transformou em mim.


Abro as gavetas do criado mudo e da escrivaninha para saber o que eu costumava guardar. Revejo fotografias, releio cartões, folheio antigas agendas. A mesma letra, algumas amigas em comum, outras que não fazem mais parte dos meus contatos freqüentes.


Revisito os acontecimentos, o período de transição, a busca por um novo destino, a festinha de despedida organizada pela irmã e as lágrimas dela ao despedir-se na rodoviária. Lágrimas de quem sabia que a distância não seria tão grande assim, mas sabia também que aquela Bianca que partia não regressaria.


Cada vez que volto, estou modificada. Mais gorda, mais magra, novo corte de cabelo, modelito diferente. A mala costuma ser sempre a mesma, o que muda é a bagagem. Um trabalho inédito, um novo desafio a vencer, um coração partido, um prazo a cumprir, um novo amor, um livro terminado.


Remexo meus cadernos de faculdade, as provas, a dissertação. Durmo na cama na qual tive tantos bons e maus sonhos. Visto as poucas roupas que deixei para trás, o chinelo que foi substituído em um novo lugar. Olho pela janela do antigo quarto e a paisagem não é diferente. O que mudou foi o jeito de olhar. Tudo parte de uma vida na qual não me encaixo mais.


Voltar a essa cidade é sempre bom. Auto-terapia. É o que me faz lembrar como foi que as coisas aconteceram. É o que me mostra que mudar também é parte do processo. Que as mudanças proporcionam visitas a nós mesmos. Que mudar não significa deixar para trás, significa apenas escolher um lugar a mais para visitar.