terça-feira, 14 de maio de 2019

Flores, de Afonso Cruz



"Uma coisa são lágrimas de cebola e outra são lágrimas do coração."

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"Cada homem é um universo, se não fosse não caberia tanto sofrimento dentro da cabeça de cada um."

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"Creio que, numa relação, o beijo terá sempre de manter a densidade do primeiro, a história de uma vida, todos os pores-do-sol, todas as palavras murmuradas no escuro, toda a certeza do amor. Mas já não é assim. Agora sabem às vacinas que tínhamos de dar à cadela (já morreu), às conversas com o diretor da escola, à loiça por lavar, à lâmpada que falta mudar, às infiltrações no teto, às reuniões de condóminos. Toco levemente os lábios dela e sabe-me à rotina, às finanças, ao barulho da máquina de lavar roupa. Beijamo-nos como quem faz a cama."

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"Nunca é fácil ser criança e esse tempo só é bom para os psicólogos ganharem dinheiro."

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"Gostava que a vida fosse assim e nos presenteasse com vários ângulos ao mesmo tempo. Poderíamos ser crianças e adultos na mesma frase. Poderíamos ser viciosos e virtuosos no mesmo gesto de pousar a chávena do pequeno-almoço. Mas se calhar já é assim, e as pessoas treinadas conseguem ver a vida como se olha para um carrinho de lata vermelho, vêem o condutor de frente e de lado, tal como sabem que uma pessoa pode ser viciosa e virtuosa no mesmo gesto de pousar."

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"Se um dia vier a acreditar em Deus, não quero relâmpagos e trovões, quero um sorriso delicado como aquele que aparecia no teu rosto. O mundo, quer-me parecer, é muito mais um sorriso ou uma flor a abanar ao vento do que um terramoto, um monumento de pedra ou um grand canyon."

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"Tenho a certeza de que a vida morre com a rotina e não com a morte, e que o hábito nos petrifica, um dia olhamo-nos ao espelho e estamos transformados em estátuas. [...] a rotina embacia-nos, torna-nos indefinidos, desfocados, fantasmas, máquinas, ao mesmo tempo que nos solidifica em estátuas de sal. A consciência da morte é o que nos desperta dessa morte em que vivemos, que nos diz o que deveríamos ter feito, o que deixámos de fazer, a morte é um despertador, um despertador que nos acorda para a inevitabilidade dos nossos erros."

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"Vivemos numa tapeçaria e que, por mais longe que estejamos uns dos outros, somos a mesma história, fazemos parte do mesmo tapete, a morte de uns é o nascimento de outros, a face da nossa vitória é a derrocada de alguém."

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"As mães são as fiéis depositárias da nossa infância, dos primeiros anos. As tuas memórias mais importantes, mais formadoras, não são tuas, são dela. E quando a tua mãe morrer, levará consigo a tua infância, perderás os primeiros anos da tua vida. Por isso, trata-a bem."

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"Houve um tempo em que cosi as minhas artérias ao teu corpo e todo o sangue que bombeava era na tua direção."

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"Era a vida a provar-me que não tinha acabado tudo, que a vida é um constante recomeço, que nos pisa e nos massacra apenas para ter adubo para se recriar, num círculo nietzschiano, exibindo uma falta de consideração, tato e educação, como se não tivesse sentimentos. A vida dá cabo de nós para logo de seguida ir ao café beber uma milnovivinte e brindar ao início de uma nova tragédia, que acabou de nascer."

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"Em certa medida, somos todos homens artificiais, de barro ou pedra ou madeira, uns pinóquios que precisam de despertar para uma vida de carne e osso. O somatório dos horrores deveria ser capaz de provocar esse despertar."

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"A solidão deve ser a única emoção que não conseguimos partilhar, se o fizermos ela desaparece."

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"Olho para as formigas e são tão pequenas debaixo dos meus pés descalços na relva, e sinto este poder imenso de as esmagar, e imagino Deus, com os mesmos pés, a olhar para nós como seres insignificantes. E Ele, com os seus pés de unhas endurecidas a pisá-las, sem se aperceber da riqueza que cada formiga tem dentro dela. E tenho vontade de gritar quem sou, fazer ver que não mereço ser pisada por um pé incauto, mas é a vida, ser formiga de Deus, ser pisada, ser uma pessoa que passeia os seus cães nos jardins com um saco de plástico para recolher a merda."

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"Não há tradutores de arte. O que faria um tradutor de arte? É muito simples, traduziria a arte para outras linguagens: olhava para os girassóis do Van Gogh e traduzia-os para as leis da Física, e assim ficava explicado o Universo. Mas esse é um trabalho que ninguém faz, todos têm medo de o fazer, somos uns cobardes a olhar para a arte, Kevin, temos medo de que aquilo nos dê uma resposta cabal e deixe de haver motivo para viver porque passámos a saber tudo. Somos uns poltrões que andam pelos museus a olhar para obras-primas para depois dizer: Maravilhoso. Maravilhoso, o caralho, aquilo é muito mais do que isso. Que digam que o Grand Canyon é maravilhoso, que as cataratas de Iguaçu são maravilhosas, está bem, mas de um quadro do Van Gogh? É só isso que têm a dizer? Maravilhoso? São uns cobardes. UNS COBARDES!"

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"Um rio, Kevin, está ao mesmo tempo na nascente e na foz. A vida também é assim, mas nós imaginamos que é um barco a descer o rio, um humilde pescador que por vezes tenta remar contra a corrente, mas é impossível vencê-la. Porém, nós somos o rio, que imagem tão gasta, Kevin, mas deve ser isso que somos. Ao mesmo tempo na nascente e na foz, moribundos e nascituros ao mesmo tempo, no útero e enterrados ao mesmo tempo, e no entanto sempre diferentes de nós mesmos, porque a água é sempre outra, a nascente está sempre a mudar, a foz está sempre a mudar, o nosso passado também, o nosso destino também, somos esta imagem tão gasta pelos poetas, pelos cantores, é isso mesmo, Kevin, uma alegoria velha, somos o tal rio, o tal lugar-comum."

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"“Creio que o guarda-chuva é uma excelente invenção. Repare: não é um objeto que acabe com a chuva, é sim algo que evita a chuva individualmente. Não gosto dela, mas não acabo com ela, não a destruo. O guarda-chuva é uma filosofia que usamos no quotidiano. A água continua a cair nos campos, apenas evito que me estrague o penteado. É um objeto bondoso, que não magoa ninguém.” Não há muita coisa assim."

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"Os pobres, como sabe, não são ricos. São as solas dos sapatos. Estão lá em baixo a proteger a envergadura toda, constantemente a serem pisados, pois a condição da sola do sapato é essa, ao mesmo tempo que serve de base, de raiz."

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