segunda-feira, 24 de novembro de 2008

As coisas quebram


A gente passa a vida toda juntando, adquirindo, querendo coisas. Coisas que facilitam a vida. Coisas das quais a gente precisa todos os dias. Coisas que a gente empacota cuidadosamente quando faz uma mudança. Coisas que a gente considera indispensáveis. Coisas que a gente passa meses desejando até conseguir comprar. Coisas que a gente ganha. Coisas que a gente nem sabe de onde surgiram, mas estão ali, entre as suas coisas. Apenas coisas.

A gente guarda porque acha que, uma hora ou outra, vai precisar. A gente chega até a sentir ciúmes das nossas coisas. Por vezes deixamos de usá-las para preservá-las, para que durem mais. A gente se ressente quando empresta uma dessas coisas e nunca mais a recebe de volta. São coisas que adquirem história. Coisas que podem já estar ultrapassadas, mas às quais a gente se apega. Ainda assim, são apenas coisas.

Eu sempre gostei muito de coisas para a casa. Para a cozinha, mais especificamente. Ganhei e comprei muita coisa para equipar esse ambiente tão acolhedor do lar. Pratos, copos, taças, xícaras, fôrmas, potes. Tudo o que se pode imaginar. Pratos de sopa de um lado, pratos rasos de outro. Canecas à frente, xícaras pequenas de cafezinho mais atrás. Travessas redondas à esquerda, travessas retangulares à direita. Maiores embaixo, menores em cima. Organização conforme o uso e o gosto.

Jogo de pratos dado por um grupo de amigas, xícaras que foram presente da tia, travessa de herança materna. Sopeira do chá de panela, jogo de taças pago em prestações, a caneca favorita do chá. Tudo em seu devido lugar, cumprindo sua função sempre que necessário. Coisas que participaram de jantares românticos, brindes de aniversário, canja no dia em que a saúde deixou a desejar. Apenas coisas.

Então, de repente, como se cansadas do uso, as coisas cederam. O armário aéreo em que elas estavam cuidadosamente armazenadas cansou de sustentá-las e colocou tudo ao chão. Ele não poupou nem uma única pequena xícara de café. Desistiu de tudo. Todas as coisas de que tanto gostava, agora, não passavam de cacos no chão da minha cozinha. Cacos de todas as cores e de todos os tamanhos. Cacos que me feriram. Pedaços de coisas que perderam o significado no momento em que se partiram.

Tudo no chão, espalhado por todos os cantos e sob todos os móveis. Não consegui recolher os cacos naquele dia. Evitei o retorno à cozinha. Não queria lembrar de tudo o que tinha guardado naquele armário que preferiu o chão à parede em que estava suspenso. Só no dia seguinte comecei a juntar os pedaços. Alças de xícaras que se libertaram. A flor desenhada no prato desprendia suas pétalas. O fundo do copo sedento da água que acolhera. A melhor porcelana na mesma situação do pirex. Nada restou. Apenas o passado das coisas tão despedaçado quanto elas. Apenas coisas.


Disseram-me para comprar coisas novas. Afinal, coisas são substituíveis. Depois de ver tudo transformado em lixo reciclável, percebi que eu não precisava tanto assim das coisas. Deparei-me com todas as outras coisas ao meu redor e entendi, com toda a clareza, que eram apenas coisas. E que, no final das contas, todas elas não passam de cacos que ainda não se partiram. Cacos dispensáveis. Tudo se quebra. O importante e o fútil. Apenas coisas. E as coisas quebram.

2 comentários:

J. Maldonado disse...

Uau, grande estrago! :D
Como diz um provérbio popular, vão-se os anéis, ficam os dedos...
É certo que as coisas que nós guardamos encerram um simbolismo esotérico, tendo por vezes um grande valor sentimental. Mas não passam de meros objectos materiais, pois o mais importante são os eventos a eles associados, o resto é irrelevante.

de Marte disse...

Quando não nos conseguimos desprender de algumas COISAS vem um dedo do destino e trata desse assunto por nós!
Assim aprendemos que, se fôssemos nós a ter tido a coragem de resolver o resolvível, não estaríamos a apanhar os cacos do inevitável.
(damn, hoje estou inspirada!!)

Beijos de Marte