Ela chegou envolta por seu longo vestido azul-marinho, a pesada pasta de um lado e uma pequena bolsa de pano do outro. Caminhou lentamente entre os que ali estavam e dirigiu-se ao seu lugar, perto da janela, perto da luz, onde seus olhos conseguiriam alcançar a todos. Retirou os óculos da caixinha como quem não depende deles. Vestiu-os elegantemente dispensando-os, olhando por cima das lentes. Os óculos em seu rosto são adereços, não são necessidade. São o recorte que ela escolheu dar a suas leituras.
A bolsinha de pano ficou em cima da mesa e logo foi aberta, provando não ser o comum objeto feminino que guarda, além da carteira e do batom, tantos outros segredos. Aquela bolsinha de pano era a proteção de um grosso livro de finas folhas. Uma bíblia, a quem olhava distraidamente. Cheia de marcações, clipes, marcadores de página improvisados, observações escritas a lápis nas bordas. Até ela começar a ler alguns trechos e seus ouvintes entenderem que o livro tão bem protegido e tão amplamente lido não se tratava da bíblia, mas de Obras Completas de Carlos Drummond de Andrade.
Mas como se fora uma religiosa, ela sabia vários trechos de cor, by heart. E os dizia como quem lê profecias, a ensinar por metáforas. Sabia exatamente onde encontrar os versos que lhe traduziam. Sua doutrina é drummondiana. As fases do poeta são as divisões de um suposto velho e novo testamento. Farewell é seu apocalipse. Sua fé é toda naquela poesia.
Gauche, José, Carlos, e não Davi, Pedro, Judas. “As sem-razões do amor”, e não “Cântico dos Cânticos”. “Alguma poesia”, e não “Gênesis”. Ela não duvida de Deus, não desmente a bíblia. Mas, para ela, é em Drummond que ‘a poesia (inexplicável) da vida’ se revela.
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Um comentário:
Não conheço, mas vou pesquisar sobre esse tal Drummond de Andrade.
Eu também tenho uma bíblia, chama-se Poesia Completa de Miguel Torga...meu escritor favorito.
Ja agora, ele tem um poema sobre o Brasil, aqui vai:
Brasil
Pátria de emigração,
É num poema que te posso ter...
A terra — possessiva inspiração:
E os rios — como versos a correr.
Achada na longínqua meninice,
Perdida na perdida juventude,
Guardei-te como pude
Onde podia:
Na doce quietude
Da força represada da poesia.
E assim consigo ver-te
Como te sinto:
Na doirada moldura da lembrança,
O retrato da pura imensidade
A que dei a possível semelhança
Com a palavra e rimas e saudade.
Critica a miguel torga:
«São muitas as histórias que sobre ele se contam e muito deformada a imagem que em certos meios dele se foi malevolamente construindo. Torga não era duro nem difícil. Foi das pessoas mais delicadas que conheci. Havia nele um aristocrata natural no comportamento, na atitude, na relação com os outros. Sempre o vi disponível para ajudar quem estivesse em dificuldade. (...) Viveu atormentado com a escrita e creio que não morreu em paz com ela. Na cama do hospital, teve sempre, até ao fim, o caderno na mão. Escreveu sempre, desbastando a prosa, cada vez mais despojada. Morreu como viveu: com inteireza...» do Prefácio de Manuel Alegre
beijo andre
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